Lisboa IV
O outro que escreve não é ele. Sou eu, um relógio sem horas que procura nos espaços e nas coisas um rasto de acontecimentos indigestos, restos de verdade que possam transformar as memórias que o trespassam num instante sempre presente e não numa clamorosa impostura do passado. Faço da minha escrita o café, o balão de aguardente e a água das pedras no final da refeição.
Há qualquer coisa na autenticidade pura dele que diz respeito à farsa que é a minha existência infeliz. Por isso, é forçoso que utilize o artifício da mentira para poder ligar melhor os pedaços de vida que não viveu, não se recorda ou quer desprezar. Faço-o com a voz autoritária de quem resolve o cubo mágico em coisa de minutos ligando quadrados de matéria e espírito numa história de cores verdadeiras.
Ele lembra-se de Angola. Tudo o que diz acerca desse tempo de tropa anda em tronco nu debaixo de um calor de sol tapado que se alastra pelo corpo como uma febre e desliza sobre a pele na forma de lágrimas sem olhos iguais às que rasgam vales de claridade nos copos de cerveja gelada.
Pouco ou nada quererá dizer sobre as bombas aflitas que um céu rasgado por asas mecânicas fazia chover sobre o capim; sobre as asas agitadas dos pássaros antes da emboscada que deixou o Rau-Rau com as feridas cobertas por pensos de terra; sobre os choros de crianças que se foram encolhendo na orfandade da distância; sobre o medo diluído às pernas abaixo do Capitão Taborda junto ao Rio enquanto ouvia o mascar dos crocodilos; sobre os silêncios e as sombras fumados debaixo dos embondeiros; sobre os horizontes que não se viam nos olhos do planalto refletido no rosto dos soldados; sobre o sabor repetido da pólvora detonada até provocar escorbuto no dedo que aperta o gatilho; sobre os morteiros que ressoavam entre um sorriso e uma granada, sobre os tiros descompassados que assobiavam marchas fúnebres. Sobre as outras coisas, as maldades que foi obrigado a cometer, nem uma palavra. Apenas uma mudez que grita mais alto que as orações sem palavras nas ruas sombrias da eternidade.
Fala apenas do dia em que se fartou de tudo. Do dia em que pegou na arma, depois de semanas a fio levando-a a tiracolo como uma mala a condizer com a roupa e à qual se recorre ao menor aceno de futilidade, e a entregou pela última vez.
Limpar a arma era uma atividade preenchida com o maior denodo pelos soldados. Ele, o outro sobre o qual escrevo, alçou-a sobre si num movimento de tédio e levou-a ao chão e manteve-se quieto, a olhar pensativamente, enquanto os companheiros de destino faziam a higiene às respetivas metralhadoras.
Ele, o outro, aquele a quem dizem respeito estas frases, tinha a farda cuidadosamente limpa, embora se notassem no peito as nódoas deixadas pelos tiros. Sentiu a necessidade de partilhar com alguém o que acabara de perceber. A cabeça direita, a olhar, a procurar o lado direito e a seguir o lado esquerdo e voltando a um e a outro, seguidamente, o nariz adunco como a agulha de uma bússola a farejar o norte. Não encontrou o Rau-Rau. O Rau-Rau não estava mais ali. Era apenas um estilhaço projetado contra as paredes de lama seca de uma cubata, o resto de vida a sacudir o pó dos joelhos na cama de um hospital militar; um peão derrubado, o que demonstrava que o Rau-Rau talvez não fosse assim tão bom no xadrez.
Uma voz barriguda, impecavelmente marcial e contundente, explodiu ao lado dele, do outro, aquele que é o osso que estas minhas palavras enchem de carne, no momento em que se sentiu consolado por saber que ao menos o Rau-Rau podia agora ver a fotografia da Clotilde descansado, que é o desinfetante que os homens em guerra utilizam quando os ferimentos das saudades começam a fazer mais força. Ouviu-se, como se essa voz viesse das profundezas da terra:
– Soldado, mexa-se! É o único da companhia que ainda não terminou a limpeza da sua arma! – a boca do alferes Cardoso estourava sempre em tiros de canhangulo.
– Não tenho intenção de limpá-la, meu alferes.
– Porquê?!
– Não se pode eliminar a sujidade ao permanente sujo, ao que serve para matar. A porcaria desta arma não está do lado de dentro, está do lado de fora, ao alcance dos tiros disparados. Seria necessária a eternidade daqueles que tombaram perante tamanha imundície para a limpar. A vida de um homem é uma roupa muito delicada para ser despida e vestida de olhos fechados.
– Está a gozar comigo?!
Não, meu alferes.
– Faça favor de limpar a sua arma. É uma ordem!
– Não o posso fazer, meu alferes.
– Vai fazer e é já!
– Já lhe disse que não, meu alferes. Não o farei, com a sua licença. Não é possível limpar o que serve para matar. É inútil, o sórdido está entranhado mesmo quando o cano brilha. Não, meu alferes. Ninguém consegue carregar uma cruz pendurada no dedo que puxa o gatilho. É demasiado peso. É impossível fazer limpezas com as mãos, os olhos e o peito sujos de morte. O que o meu alferes me está a mandar fazer é lavar o chão do inferno com o cabo da esfregona e as cerdas nas mãos. Não, meu alferes. Não posso. O lixo vai todo para as lixeiras, mas já viu alguém limpar uma lixeira, meu alferes? Para onde vão os montes de sujeira acumulada no coração de um homem? Desculpe, meu alferes, não limpo a arma.
– Soldado, o que é que você anda a fazer aqui?
– Não sei o que andamos a fazer, meu alferes, mas é certo que há homens a morrer.
Neste momento, sou eu que escrevo. O outro que imagina o real do semelhante escoltando o caminho que ele seguiu e vendo as coisas que ele viu. As ações sensíveis que pratica justificam a geografia tangível do que escrevo. Existo em relação a ele e ele vive em relação a mim. Mas, por agora, mais nada me é autorizado inventar sobre os dias de desespero em que ele, sim, o outro, o que vestiu a farda da agonia e da compaixão, passou numa cadeia militar tantas vezes acusado de insubmissão.
(Continua)