Saxofone
Comemorou-se, no passado dia 6 deste mês de novembro, o 201.º aniversário do nascimento de um dos mais geniais inventores de instrumentos musicais de sopro dos tempos modernos, cujas criações contribuíram de forma determinante para moldar a harmonia sinfónica de orquestras e bandas filarmónicas e sem as quais não teria sido possível a existência de alguns géneros musicais, nomeadamente o jazz. O Jornal de Monchique, através desta rubrica, homenageia Adolphe Sax, prestando assim o seu singelo tributo ao engenhoso inventor da família instrumental dos saxofones.
Depois da voz humana, os instrumentos de percussão e de sopro, objectos sonoros primordiais do mágico e do ritualizado, constituem os mais antigos sistemas de expressão e de imitação dos sons da Natureza inventados pelo Homo Sapiens. A história dos instrumentos de sopro remonta ao Paleolítico Médio1, período em que o Homem já estava suficientemente evoluído para se aperceber que, ao soprar de uma certa forma canas ocas ou ossos de pássaros, os sons que daí extraía podiam servir-lhe de meio de comunicação. Ao ter a ideia de perfurar pequenos buracos ao longo daqueles rudimentares modelos de tubo, permitindo-lhe aumentar e diversificar o número de sons produzidos, a conotação mágica e espiritual a que as primitivas sonoridades estavam associadas, deu lugar à invenção do instrumento musical designado por flauta. A partir desta altura, a curiosidade humana, aliada à evolução e ao desenvolvimento da tecnologia, permitiu, ao longo dos séculos, o aperfeiçoamento dos instrumentos e ao mundo acústico progredir, lenta mas gradualmente. Mas é, sobretudo, na primeira metade do século XIX, mais concretamente entre 1810 e 1850, com o grande impulso dado à música orquestral, que os instrumentos musicais adquirem, na sua essência, as formas que ainda hoje apresentam. Coincidindo com este progresso, nasce em 1814, no seio de uma família de fabricantes de instrumentos musicais oriunda da cidade belga de Dinant, o primogénito dos onze filhos de Charles-Joseph Sax e de Marie-Joseph Masson. Foi na oficina do pai, que se especializara no fabrico de clarinetes e trompetes, que o pequeno Antoine-Joseph (a posteridade lembrá-lo-á como Adolphe Sax) deu os primeiros passos: por entre tábuas e barrotes de madeiras exóticas, chapas metálicas, colas e vernizes, em breve manifestava uma apurada sensibilidade musical, um precoce espírito inventivo e uma propensão natural para o fabrico de instrumentos de sopro. Apesar de ter sofrido uma infância e adolescência bastante atribuladas2, Adolphe frequentou com brilhantismo os cursos de flauta, clarinete, solfejo e harmonia do Real Conservatório de Bruxelas, onde era tal o seu virtuosismo que chegou a ser proibido de participar em concursos a nível nacional por monopolizar sempre os primeiros prémios. Foi a tocar clarinete que o jovem Sax se apercebeu das imperfeições do instrumento, despertando-lhe o espírito inventivo. Na exposição nacional de produtos da indústria belga de 1830, Adolphe, com apenas quinze anos de idade, apresenta no stand do seu pai alguns modelos de flautas e clarinetes em marfim, de sua autoria, que lhe valem muitos elogios por parte do júri. Na Exposição de 1835, recebe uma menção honrosa por “…um clarinete em madeira de buxo com 24 chaves, inventado, fabricado e aperfeiçoado por Sax filho, jovem de 19 anos que se inicia na carreira de fabricante de instrumentos musicais com um belo trabalho…”3. Clarinetista de formação, as muitas modificações que introduz naquele instrumento para tentar melhorar-lhe o som, levam-no a conceber uma nova família de metais, a que ele dá corpo na oficina que entretanto abrira em Paris, em junho de 1841: o primeiro, um barítono em fa composto por um tubo metálico (latão) cónico, com 26 orifícios controlados por 23 chaves vedadas com sapatilhas de couro e cuja emissão de som é produzida através de uma palheta simples presa numa boquilha de madeira semelhante à do clarinete, é apresentado ao público na Exposição Industrial de Paris de 1845. Tinha nascido o saxofone! No ano seguinte, Sax regista a patente para “um sistema de instrumentos de sopro ditos saxofones” que poderia ter-lhe assegurado a fortuna4, não fora os sucessivos cataclismos políticos que quase destruíram a França5 e, porque uma desgraça nunca vem só, os inúmeros processos judiciais movidos por concorrentes invejosos que o levaram por três vezes à falência. Mas, graças à amizade e ao apoio constante do famoso compositor Hector Berlioz6, o qual compôs, em 1844, O Canto Sacro, obra em que pela primeira vez soaram algumas notas de saxofone, Adolphe Sax conseguiu ver-lhe reconhecida a autoria e os direitos dos seus inventos pelos tribunais franceses e belgas7. Em 1857, é criada no Conservatório de Paris uma classe para a formação de saxofonistas militares, cuja cátedra foi logicamente entregue ao seu inventor, que regeu a aula até 18708. Quando faleceu, em 7 de fevereiro de 1894, Adolphe Sax estava longe de suspeitar quão longo viria a ser o caminho musical que haveria de percorrer o instrumento que já então lhe colocara o nome nos dicionários etimológicos: menos de cem anos volvidos sobre o fabrico dos primeiros protótipos, a maior viagem que os membros da família dos saxofones empreenderam foi a travessia do Atlântico, em direcção aos Estados Unidos da América. No início dos anos 1920, as grandes figuras da música afro-americana que eram Scott Joplin, Bessie Smith, Count Basie, Dizzy Gillespie ou Duke Ellington e, um pouco mais tarde, Charlie Parker, Miles Davis, Louis Armstrong e Chick Corea apossaram-se do instrumento, dando-o finalmente a conhecer aos melómanos do mundo inteiro. Após Berlioz e Wagner, ei-lo por sua vez adorado pelos intérpretes e os amadores dos blues, do swing, do bebop, do ragtime e de tantas outras correntes do jazz9!
Citações:
“A música avançava no caminho tapeado de tojo e sargaço: metais à frente, baixos, saxofones, oficlide; ao centro, a parte cantante; no couce, a pancadaria e címbalos.”; Aquilino Ribeiro in “Mina de Diamantes”, IV, pág. 183; Ed. Bertrand/Círculo de Leitores, 1984.
“O saxofonista angolano Nandinho contou-me que…aceitou um convite para tocar em Nova Iorque. Sem saber falar inglês, a primeira coisa que lhe ocorreu, depois de passar a alfândega, foi dirigir-se a um polícia negro…Era um emigrante cabo-verdiano…Ficaram primos para o resto da vida.”; José Eduardo Agualusa in “Substância do Amor/Bananeiras no Terraço”, pág. 95; D. Quixote.
“…Lembro-me mal, Manuela, dessa Aurora submarina de Almada em que o contínuo desapareceu…arrastado por uma vaga de saxofones…”; António Lobo Antunes in “Tratado das Paixões da Alma”, 1, pág. 90; D. Quixote.
“- Anda cá, malandro, ninguém te deu licença para entrares! Farrusco, não ouviste? Isto dito em potente voz de saxofone.”; João Aguiar in “O Canto dos Fantasmas”, Parte 1ª. Pág. 19; D. Quixote.
Notas:
1 Flautas fabricadas a partir de marfim de mamute e de ossos de grifos e de urubu, com mais de 35.000 anos, foram achadas pelo arqueólogo Nicholas Conard nas cavernas de Hohle Fels, na região sudoeste alemã da Suábia.
2 O pequeno Sax sofreu diversos acidentes, doenças e intoxicações quase fatais: não se sabe como sobreviveu, com apenas dois anos de idade, a uma fractura de crânio provocada por queda de uma janela de um segundo andar; aos seis, ao ingerir, por engano, ácido bórico; aos nove, fractura de uma perna; aos catorze, ao ficar entalado na porta de uma carruagem, rasgando um braço; aos dezanove, caiu-lhe um ladrilho em cima da cabeça e aos vinte e três anos não morreu, por milagre, após beber vinho estragado.
3 Cf. “Dictionnaire des facteurs d’instruments de musique en Wallonie et a Bruxelles du 9ème siècle à nos jours.
4 De facto, nesse mesmo ano, uma profunda reestruturação das músicas regimentais e a adopção pelo exército francês e pelas principais Orquestras Filarmónicas de França dos inventos de Sax, colocaram-no numa posição de monopólio no fornecimento de instrumentos musicais ao Estado francês.
5 Revolução de 1848, Comuna de Paris, golpe de estado de 1851…
6 Hector Berlioz (1803-1869) esteve na origem da apresentação de Sax ao restritivo mundo musical parisiense: ao publicar, no Journal des Débats de 12 de junho de 1842, um extenso elogio ao trabalho desenvolvido pelo fabricante, abriu-lhe as portas dos salões e das tertúlias frequentados pelos grandes compositores, músicos virtuosos e regentes de orquestra da época, lançando-o na senda da fama. Nomes grandes da música mundial como Debussy, Puccini, Rossini, Strauss, Wagner e Verdi foram admiradores entusiastas dos instrumentos de Adolphe Sax, que se apressaram a incluir nas suas obras.
7 Catorze diferentes modelos de saxofones, clarins, cornetas de chaves, contrabaixos de harmonia, trompetes e um trombone de pistões, num total de 33 novos instrumentos.
8 A classe foi extinta nesse ano, quando todos os estudantes foram convocados pelas respectivas unidades para os campos de batalha (Guerra Franco-Prussiana) e apenas reaberta no ano de 1942 (!).
9 Em 11 de janeiro de 1994, o Presidente norte-americano Bill Clinton, no decurso de uma visita à República Checa, esteve no Reduta Jazz Club de Praga, onde perante uma sala cheia de apreciadores daquele género musical (entre os quais se encontrava o humilde autor destas linhas), interpretou de improviso ao saxofone tenor o clássico Summertime