Bala perdida ou os caminhos ínvios da Justiça
Hugo Ernano deve ser o militar da GNR mais conhecido em todo o país. Foi condenado em 2008, por ter disparado em serviço sobre uma carrinha em fuga e uma bala ter atingido um rapaz de etnia cigana que seguia escondido na carrinha, com o pai e um tio, após um assalto. Foi condenado e não se resignou a uma decisão que é por muitos entendida como um equívoco de sérias consequências para o moral das polícias. “Bala perdida”, por Hugo Ernano com Rosa Ramos é o relato desses acontecimentos, A Esfera dos Livros, 2015. Um antigo Ministro da Administração Interna, Rui Pereira, é o prefaciador desta empolgante reportagem. Relata sumariamente os factos que foram conducentes à condenação de Ernano: “O militar condenado mandou parar a viatura dos suspeitos, mas teve de se esquivar para não ser atropelado e ficou ferido. Seguiu-se uma perseguição em que usou a arma para imobilizar a carrinha, que circulava perigosamente. A descrição dos factos revela que (Ernano teve a preocupação de respeitar a lei que rege o uso de armas de fogo por polícias. Disparou dois tiros de advertência para o ar e um terceiro tiro para o pneu traseiro esquerdo. A carrinha não parou. O militar visou depois o pneu traseiro direito, mas um solavanco em piso irregular provocou o desvio suficiente para que uma bala atingisse a criança, que viajava atrás sem que alguém o pudesse saber (até porque a carrinha tinha os vidros tapados)… Como resumiremos o caso de Hugo Ernano? Uma criança morre injustamente, devido à leviandade do pai (que talvez pretendesse iniciá-la no caminho do crime). Esse pai leviano acabou por ser contemplado com uma indemnização, cuja origem radica, paradoxalmente, no seu ato temerário. O militar da GNR, que procurou dar o seu melhor e atingiu inadvertidamente a criança, foi condenado, a pretexto de uma morte imprevisível e da suposta da violação dos deveres de cuidado (que, no entanto, tudo indica ter cumprido)”. O militar da GNR não se compadeceu com a lei da selva e os meritíssimos juízes inquinaram, pelas suas ínvias interpretações, o cumprimento do dever de qualquer polícia.
Rosa Ramos redigiu uma eletrizante reportagem, o barro são os depoimentos de Ernano, e paulatinamente vai dando formato, num ritmo intenso e numa escrita absorvente à perseguição da carrinha e a tudo quanto se seguiu depois. Os factos são indiscutíveis, o purgatório e os caldeirões do Inferno vieram a seguir: os interrogatórios, as mentiras do assaltante, o clima de hostilidade que se foi montando a Ernano. Mas a jornalista Rosa Ramos vai mais longe, torna viva as operações e percebemos que o desempenho de Ernano é sincero e leal. O único senão que encontramos na trama é um certo andar para trás e para a frente, ocorreram os acontecimentos no Largo da Igreja, em Santo Antão do Tojal, a vida de Hugo Ernano mudou radicalmente, segue-se o pedido de casamento de Daniela, a mulher de Hugo, temos a via-sacra dos julgamentos, temos a movimentação nas redes sociais, fala-se sobre a legislação quanto ao uso das armas e logo a seguir vamos aos antecedentes de Hugo Ernano, o que estudou e não estudou, é um tanto ou quanto descabida a organização da trama, depois das decisões dos tribunais e do militar da GNR viver humilhações e sobressaltos, a jornalista escreve a propósito do currículo deste militar condenado: “Sou um criminoso? Não. Sou um agente da autoridade. Sou mal formado por, segundo os relatórios sociais pedidos pelo tribunal, dar muita importância ao cumprimento da lei e me esforçar por educar o melhor que sei? Ou por ter prendido a minha irmã curando-a? Sou louco por, numa altura em que não tinha grande vida pessoal, investir tudo no trabalho? Sou um sujeito perigoso por ter tido dois processos disciplinares num universo de muitas centenas de tensões na GNR?”. E depois saltamos para os antecedentes, vamos às origens, quem era o pai, quem era a mãe, o número de irmãos, a vida em Carnaxide e depois em Odivelas, os estudos na escola da Arroja, feito este interregno voltamos à luta pela justiça… Este desequilíbrio não destitui a reportagem no que ela tem de mais relevante, mas desorienta o leitor, não se está a ler nem um romance, nem um ensaio mas uma reportagem, esta tem os seus condimentos e formato próprio. Hugo Ernano pode sentir-se orgulhoso pelo confronto em que se envolveu para que lhe seja feita justiça. Espero que este documento obrigue a repensar imensas coisas quando um polícia foi condenado, afinal, por ter cumprido o seu dever e manifestamente ter evitado uma desgraça maior no Largo da Igreja.
Autor: Beja Santos