A apicultura da serra de Monchique – resenha histórica
O mel é um produto alimentício produzido por abelhas melíferas a partir do néctar das flores e de secreções de certas plantas que estes insetos recolhem, transformam, combinam com substâncias específicas próprias, armazenam e deixam amadurecer nos favos de uma colmeia. É usado como alimento desde a Pré-História, como comprova o desenho encontrado na caverna Aranha, perto de Bicorp (atual Valência), em Espanha, no qual se mostra um homem primitivo colhendo mel de um enxame com o auxílio de uma escada de cordas. De facto, a aquisição deste produto era feita de forma ainda muito rudimentar, uma vez que os enxames eram explorados de forma predatória e extrativa, com danos para o meio ambiente e morte das abelhas.
Todavia, com o passar dos anos o homem foi aprendendo a proteger os seus enxames, passando a instalá-los em colmeias mais simples e procurando manejá-las de forma a conseguir uma maior produção de mel. São exemplo disso os egípcios, que há cerca de 2400 anos a.C., começaram a criar abelhas em potes de barro, embora a recolha do mel ainda correspondesse aos métodos anteriores. Considera-se, assim, o surgimento da apicultura, atividade do ramo da zootécnica dedicada ao estudo e criação de abelhas para a produção de mel, pólen, própolis e geleia real. A palavra deriva do latim e tem por base as expressões «apis», que significa abelha e «cultura» que remete para modo ou efeito de cultivar ou criar. Há ainda indícios desta atividade na China Antiga, e na Europa terão sido os gregos a iniciá-la, devendo-se a Aristóteles os primeiros escritos sobre apicultura. Seguiram-se os romanos, que deram maior incremento à profissão, sobretudo durante a ocupação.
A partir de então, as abelhas tornam-se espécies sagradas para muitas civilizações, surgindo as primeiras lendas sobre o inseto que passou a assumir cada vez maior importância económica e a ser considerado um símbolo de poder para reis, rainhas, cardeais, duques e príncipes, fazendo parte de brasões, cetros, coroas, moedas, mantas reais, entre outros. Este valor dado às abelhas era tal que, na Idade Média, o roubo dos enxames era considerado crime, punido com a morte.
Geralmente encontrado em estado líquido viscoso e açucarado, o mel tem vindo a representar, para a região de Monchique, um inegável valor económico. Numa das primeiras referências ao alimento no século XVI, Frei João de São José descreve, na «Corografia do Reino do Algarve» como as serras locais tinham «muitas silhas de colmeias de que se tira cada ano grande quantidade de cera com que os moradores destas partes granjeiam bem a sua vida». No início do século XVII, Henrique Fernandes Sarrão faz alusão ao solo «muito mais fértil e abundante de águas» desta localidade que já nesta altura se encontrava «cercada de pomares deleitosos, em que há castanhas, nozes, pêras, maçãs e outra muita fruta; tem muitas vinhas, muita criação de gado, muito mel e cera e pão».
Terá sido por esta altura que várias familias espanholas se fixaram em Monchique e aqui estabeleceram solar, «atraídas não somente pela amenidade do clima e riqueza hortícola da região, mas principlamente pelo cultivo de colmeias que o sítio se apropriava e que enriqueceriam os seus possuidores, pela produção de cera e mel, numa época em que o culto atingira o máximo: a cera para os altares e o mel para os doces dos conventos». Em 1631, Pêro da Silva funda o Convento de Nossa Senhora do Desterro que, no ano seguinte, é entregue à terceira ordem de São Francisco. Sendo aqueles frades ligados às multiplas atividades do campo, é provável que os trabalhos apícolas tenham tido grande incremento nesta região e contribuído para o aumento da população nos anos seguintes.
De facto, a apicultura tornou-se numa atividade com cada vez maior importância para a economia local, visto que já em 1793, as Posturas Municipais, que regulamentavam os deveres públicos dos munícipes, incluiam nos seus artigos a cultura das abelhas, através dos capítulos 63 «Matar colmeias e abelhas» e 104 «Colmeias». Em 1842, o «Código de Posturas da Câmara Municipal de Monxique» veio reforçar esta ideia, aplicando uma coima de «quinhentos reis» a quem tivesse «colmeias dentro da Villa» ou a menos de um «quarto de legoa distante».
Um ano antes, na «Corografia ou Memória Económica, Estatística e Topográfica do Reino do Algarve», de João Batista da Silva Lopes, somos informados da existência de colmeias em cortiços feitos de sobreiros e azinheiras, assim como da abundância de plantas aromáticas, que, um pouco por toda a região, «produzem excelente mel». Sobre Monchique, o autor refere que além do gado «vacum» e da variedade de fruta, também predominavam «muitas malhadas de colmeias e em tal abundancia que o dízimo do mel e cera andava arrendado por 36$000 mil réis». Charles Bonnet corrobora esta situação ao afirmar, em 1850, que «os algarvios possuem uma grande quantidade de abelhas, que vivem em colmeias feitas de cortiça, as quais produzem muita cera e mel», cujo odor é, no entanto, muito acentuado «devido à grande quantidade de plantas aromáticas, que existem nos montes e servem de alimento a estes insetos».
José Rosa Sampaio cita, no opúsculo sobre a apicultura monchiquense, alguns documentos de âmbito comercial que reproduzem a evolução desta atividade no concelho de Monchique durante o século XX. Os anuários da década de 1920 referem os «produtores de cera» Helena Emília Coelho Pinheiro, Joaquim Alves, Joaquim Callapez Guerreiro e Manuel Martins Lino Júnior e os «negociantes de cera» Baltazar Rodrigues Sampaio, Isidro Barata, José da Cruz e Manuel Martins Lino. Na coleta de 1938 é anunciada apenas uma indústria de cera e mel e em 1946, pelo anuário comercial relativo a esse ano, sabemos que José da Silva Júnior e Manuel Martins eram os dois únicos apicultores a exercer essas funções, aumentando para 12 o número de profissionais no ano de 1957. Já no Inquérito às Explorações Agrícolas do Continente, publicado em 1952, percebe-se que «Monchique tinha um total de 3127 apiários, dos quais 406 se dedicavam à produção de mel, possuíndo 4659 cortiços e 785 colmeias». Dez anos depois, o Anuário Agrícola de Portugal insere o nome de «oito produtores de mel e colónias de abelhas» e, em 1965, o Anuário Comercial de Portugal incluia o nome de dez novos apicultores, mantendo-se o mesmo número de cultores no documento publicado em 1969.
Embora o uso do cortiço já esteja ultrapassado, a colheita de mel na serra de Monchique ainda é feita de forma artesanal, com muitos apicultores a recorrem ao sistema de transumância, deixando as suas colmeias em locais mais aprazíveis e abundantes da flora local como a urze, rosmaninho, medronheiro, laranjeira e eucalipto, de forma a produzir um mel de «alta qualidade» do tipo multiflor. Já em 1940, José Gascon asseverava a importância de melhorar as técnicas de exploração das colmeias, considerando que «o mel e cera aqui produzidos são de óptimas qualidades, precisando porém de ser posto de parte o antiquado sistema dos cortiços e feita a conveniente plantação e cultura de plantas e árvores melíferas que assegurem a vida do exercício apícola».
Em Monchique, o consumo do mel repartia-se pela alimentação familiar, sendo utilizado, maioritariamente, nas receitas de vários bolos e filhós e pela medicina popular, como ingrediente para a confeção de mezinhas e de xaropes para gripes e constipações. Nesta localidade também é frequente encontrar produtores de água mel, um derivado feito a partir da cera que sobra após o mel ser extraído, assim como de melosa, bebida espirituosa que resulta da mistura de mel com aguardente de medronho. Também a cera foi, em tempos, muito mais aproveitada para o fabrico de velas para as igrejas e conventos, chegando mesmo a laborar, na freguesia de Marmelete, um lagar onde se produziam e comercializavam velas, sobretudo para outros concelhos.
Atualmente, os apicultores monchiquenses estão associados à APILGARBE (Associação dos Apicultores do Barlavento Algarvio), sendo que o mel aqui produzido pelas abelhas «apis mellifera iberica» tem Dominação de Origem Protegida (DOP), consagrada pelo uso face às referências escritas sobre este produto, que datam do século XVI.
Bibliografia:
CARVALHO, Augusto da Silva, «Memórias das Caldas de Monchique», Edição da Comissão Administrativa das Caldas de Monchique, Lisboa, 1939;
GASCON, José António Guerreiro, «Subsídios para a Monografia de Monchique», 2.ª edição (facsimiliada), Algarve em Foco Editora, Faro, 1993;
GUERREIRO, Manuel Viegas, MAGALHÃES, Joaquim Romero, «Duas Descrições do Algarve do Século XVI» in «Cadernos da Revista de História Económica e Social», nº3, Sá da Costa Editora, Lisboa, 1983;
LOPES, João Baptista da Silva, «Corografia ou Memória Económica, Estatística Topográfica do Reino do Algarve», 1.º Volume, Algarve em Foco Editora, Faro, 1988;
SAMPAIO, José Rosa Sampaio, «O Trabalho das Abelhas: Contributo para a História da Apicultura no Concelho de Monchique», 2.ª edição, Monchique, 2013.
* Técnica Superior de Património
Foto: Nelson Inácio