Colt
A arma foi, garantidamente, a mais antiga invenção do Homem. Desde as suas origens pré-históricas, é bem provável que os ancestrais do ser humano, quer para se defenderem do ataque das feras, quer para obterem alimento ou, mais prosaicamente, para marcarem posição territorial, se tenham socorrido de pedras e paus, usando-os como armas ao lançá-los contra os alvos que pretendiam abater ou afastar. Isto, muito antes que aprendessem a dominar o fogo1 ou que tivessem sequer inventado a roda2. A invenção da arma teve um imenso impacto sobre as condições de vida dos humanos, permitindo-lhes satisfazer duas necessidades vitais tão indispensáveis quanto a respiração e a água: a alimentação e a protecção. Com efeito, o constante aperfeiçoamento das armas primitivas (dardos, flechas e lanças) e o desenvolvimento de meios de arremesso (fundas, arcos e bestas), não só permitiram ao Homem caçar animais que, pelo seu porte, não podiam ser capturados (mamutes, ursos, javalis, veados) como lhe asseguraram protecção contra os predadores, principalmente o maior de todos, o seu alter ego. Quando o troglodita, de natureza vigorosa, porém rústico, se viu confrontado com um homem engenhoso manuseando habilmente uma arma, opôs-se-lhe certamente com bastante violência, obrigando-o a aperfeiçoar o seu invento. Foi o início de uma arte que orientou e influenciou a história da humanidade até aos nossos dias. Negar o papel preponderante que tiveram as armas em geral e o das armas de fogo em particular na nossa história, equivale a negar a própria História. As primeiras armas de fogo apareceram na China do séc. VIII, uma espécie de lança-chamas (Huo Sang) que evoluiu das flechas incendiárias, mas que atingia maiores distâncias e provocava mais devastação. Na Europa, foi apenas na segunda metade da Idade Média (séc. XIII) que surgiram as primeiras dessas armas, provavelmente introduzidas pelos muçulmanos de Granada. Foi, contudo, com a introdução da pólvora negra3 no mercado europeu, que se originou toda uma indústria dedicada aos diferentes tipos e modelos de armamento, nomeadamente para actividades bélicas, desportivas e defensivas propícias ao aguçar do espírito inventivo. Algumas dessas armas tomaram o nome dos seus inventores e, pelo impacto que, para o bem ou para o mal, tiveram nas civilizações modernas, os génios que as criaram justificam um lugar de destaque na galeria de personalidades às quais se dedica este trabalho.
Este vocábulo, que a banda desenhada dos anos 50 do século passado popularizou com a publicação das aventuras do Máscara Negra4, do Roy Rogers ou do Kit Carson5, tem posto em sentido mais do que um etimologista. Os autores de dicionários contentam-se com defini-lo como “revólver do faroeste” ou “pistola automática”, mas a história de Samuel Colt merece ser contada com mais detalhes. Nascido em Hartford, no estado norte-americano do Connecticut, a 19 de Julho de 18146, o jovem Samuel era dotado de um temperamento particularmente empreendedor. Desejoso de conhecer novos horizontes, embarca, aos 16 anos de idade, como grumete a bordo de um cargueiro com destino à Índia. É durante essa viagem que tem a ocasião de ver algumas das armas saídas da oficina de Elisha Collier, pioneiro na utilização de pederneira como meio de produzir a faísca. Naturalmente dotado para a mecânica, fica também fascinado com a engrenagem que faz mover a roda do navio e, da observação minuciosa dos dois aparelhos, imagina um modelo de arma de fogo capaz de disparar várias vezes sem ser recarregada, que constrói em madeira, e que lhe servirá mais tarde de protótipo para a sua invenção. O princípio do revólver, ou seja de uma arma com capacidade de repetição, não era novidade, porquanto o capitão norte-americano Artemus Wheeler em 1818, já tinha ombreado a tarefa de introduzir melhoramentos nos primeiros modelos de armas desse tipo, conhecidas na Europa desde o século XVII. Mas o manuseamento dessa arma de fogo, composta por uma platina para o sílex, de uma câmara de armazenamento de pólvora e de um sistema de rotação automático era demasiado complexo e pouco fiável. Samuel Colt, sempre atento a uma boa oportunidade de fazer negócios, compreende de imediato o partido que pode tirar daquela técnica. Em 1831, de regresso a casa, aproveitando a invenção da cápsula de fulminato e substituindo o inseguro sistema de ferrolho manual por um aferrolhamento automático, comandado pela armação do cão, Colt fabrica um primeiro protótipo em metal, que mais não é do que um aperfeiçoamento da arma de Wheeler. E apressa-se a registar a patente não só nos Estados Unidos mas também na Europa. Em 1836, Samuel Colt realiza finalmente o seu sonho, dando corpo ao revólver de cinco tiros, primeiro modelo de arma de fogo de porte, de repetição, dotado de um cilindro giratório, que todavia é recusado pelo exército americano. Funda então a Patent Arm Manufacturing Company of Paterson, com o objectivo de comercializar o seu invento e consegue obter uma importante encomenda do governo do Texas, recentemente independente, em guerra contra os Índios e os Mexicanos.
Pormenor revelador: para prover às necessidades materiais de Samuel Colt, homem de negócios, o “doutor Coult, de Calcutá”, patronímico exótico nascido da fervilhante imaginação do precedente, percorre a América do Norte de lés – a – lés, apresentando como espectáculo uma feira itinerante de invenções originais e pitorescas sem, todavia, qualquer relação com armas de fogo. Apesar dos esforços conjuntos de Colt e de “Coult”, o exército mantém-se indiferente ao seu invento que, no entanto, já tinha dado provas consistentes no terreno, ao assegurar aos Texas Rangers retumbantes vitórias sobre os índios Comanches. Em 1842, a firma e a fábrica de Colt declararam-se falidas.
Arruinado, Samuel Colt dirige a sua atenção e esforços para outro tipo de arma: as minas submarinas que, apresentadas ao Congresso norte- americano, lhe garantem um importante subsídio pecuniário. Mas a guerra entre o Texas e o México atinge uma tal amplitude que o capitão Sam Walker consegue convencer o Departamento de Guerra a equipar o exército com os revólveres Colt, declarando: “Prefiro defrontar mil soldados inimigos com 250 soldados armados de revólveres Colt do que com 1000 homens equipados com o armamento tradicional.” Para satisfazer o contrato, Colt desenvolve o famoso revólver de seis tiros, que a pitoresca linguagem do Oeste americano haveria de baptizar com o nome de “Juiz Colt e os seus seis jurados”. A partir daí, Samuel Colt, graças ao mercado militar, cujas encomendas não cessarão mais, sobretudo durante a guerra da Secessão, vai edificar um dos primeiros impérios industriais da época, tanto nos Estados Unidos, onde durante muitos anos deterá um quase-monopólio, como na Europa, que ele conquista pela originalidade e pela qualidade das suas armas. O prestígio obtido nos campos de batalha abre-lhe o mercado civil e os colts, do “ Army Model 1847” ao famoso “Peacemaker”, passando pelos “Dragon” e os “Navy”, vão fazer de Samuel Colt um homem muito rico, mas sobretudo uma figura legendária, estatuto que ele, aliás, cultivava prazerosa e complacentemente. Quando, em 10 de Janeiro de 1862, vencido pela doença da gota, de nada lhe servindo estar cercado por um arsenal digno de qualquer um dos muitos exércitos que equipou, se finou, aquele a quem chamaram o Egualitário – por causa da sua célebre frase “Deus criou o homem, Colt tornou-os iguais” – morreu mesmo a tempo de não passar pelo desgosto de ver os seus gloriosos colts, que todos os aventureiros e os destemidos figurões do folclore do Velho Oeste, Jesse James, Buffalo Bill, Billy the Kid ou os irmãos Dalton manejaram com tanta destreza, suplantados por armas mais modernas e melhor adaptadas às exigências civis e militares da época.
Citações:
“Com um sorriso de orgulho, o narrador explicou como teve, então, um papel decisivo no desenlace da aventura, pois andava sempre armado, e a todos surpreendeu quando se aproveitou da distracção provocada pela entrada intempestiva do bandido para sacar do seu colt de seis tiros.”; Pedro Medina Ribeiro in “O Diletante e a Quimera”, pág. 286; Editora Teorema/Leya, 2013.
“Deitado na cama, encostou o travesseiro alto, e pegou na gaveta o seu colt cavalinho, calibre 32.”; João Gilberto R. da Cunha in “ O Triângulo de Bermudas”, pág. 111, Editora Fundação Peirópolis.
“O forasteiro, a cada indicação do cowboy para identificar o negro, ia respondendo: “mas estão lá dois de botas”, “ mas estão lá dois de chapéu”, “mas estão lá dois de camisa vermelha…”. O cowboy perdeu a paciência, sacou do seu colt 45, disparou e disse: “É o que está no chão!”; M. C. Bastos in “Episódios – Eufemismo e Sublimação”, jornal ELO, da Associação dos Deficientes das Forças Armadas de 31 de Agosto de 2015.
Notas:
1 Vestígios arqueológicos recentes, apontam para que o uso habitual do fogo, na Europa, remonte a cerca de 400.000 anos (Neandertal). Porém, uma caverna investigada em Israel revelou indícios do uso controlado do fogo remontando a 780.000 anos.
2 A mais antiga representação de uma roda foi encontrada numa placa de argila datada de 3.500 a.C., perto da cidade-Estado de Ur, no actual Iraque, o que faz supor que a sua invenção deve ter surgido por volta dessa época ou uns séculos antes (+ ou – 6.000 anos).
3 Invenção chinesa do século III a.C., inicialmente destinada para fins lúdicos (fogo-de-artifício).
4 Revista “Mundo de Aventuras”
5 Revista “Condor Popular”.
6 Duas importantes tecnologias desenvolvidas nesse ano do nascimento de Samuel Colt, 1814, viriam a contribuir decisivamente para a sua própria invenção: a cápsula de fulminato, que lhe permitiu conceber os primeiros revólveres de funcionamento seguro, e a construção da primeira máquina a vapor, que lhe proporcionou o meio de fabricar as suas armas em série.
(Texto escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico)