Meire Gomes: “Eu sou movida pelo que sinto”
Por Diogo Petreques
A pintora, oriunda da Bahia, e há 24 anos em Portugal, fez uma reflexão sobre o seu percurso artístico, as origens do seu amor pelo belo e quais as razões que fazem com que Portugal e, em particular, Monchique tenham um lugar no seu coração.
Jornal de Monchique – Como e quando é que começou a sua paixão pela arte?
Meire Gomes – Se me perguntar, não sei, eu acho que desde sempre, porque já na escola tinha um grande problema com a minha professora. Às sextas-feiras, ela colocava-nos para “encher chouriço”, digamos assim, e eu fazia os meus desenhos. Quando mostrava, ela via e não acreditava que eram meus. Achava que vinha de casa, que alguém fazia. Recordo-me muito bem disso, porque detesto que alguém duvide de mim. Assim sendo, isso já está na minha natureza, desde pequena, então marcou-me muito ela não acreditar.
JM – Teve alguma formação?
MG – Se me perguntar se eu tive alguma formação, se estive nalguma universidade, não o fiz. A minha universidade foi a vida. Nasci no interior da Bahia, estive com os meus pais mas, entretanto, houve problemas com eles e eu fui adotada por um casal que não podia ter filhos. Essa senhora que eu tive muito orgulho de conhecer, de conviver e que chamava de minha “mãeinha”, acredito que foi quem me deu, sem perceber, os maiores incentivos. Porquê? Porque nas minhas férias em vez de eu ir brincar com as crianças da rua, eu tinha que bordar. Ela me dava sempre panos, linhas, fazia os rabiscos, os desenhos e eu ia cobrindo com as cores, com os pontos. Quando casei com 15 anos, eu tinha o meu enxoval pronto. É algo que não é assim bonito de se recordar, porque foram horas de brincadeira roubadas, mas eu vejo o lado positivo, visto que foi assim que fui seguindo os traços e conhecendo cores que tomavam forma. Acredito que influenciou muito, porque logo depois, com 16 anos, tive o meu primeiro bebé e fiz as coisinhas dele. As minhas amigas gostaram e começaram a pedir para eu fazer também. Alguns anos depois, veio a separação e eu, uma mulher com 26 anos, que nunca tinha trabalhado, vi-me com três filhos e tive que me safar. Não queria que os meus filhos mudassem o padrão de vida, porque era bom, com escola privada. Entretanto, fiz uma proposta à diretora do estabelecimento, para que eles lá permanecessem, mas que eu pagaria os custos com o meu trabalho. O que é que eu iria fazer? Ensinar as crianças a pintar. Aquele pouco que eu sabia, eu transmitia e aquilo era divertido para eles. Era prazeroso porque também via os meus filhos e consegui fazer essa parte toda até eles entrarem na universidade, trocando os meus serviços, pagando bolsas de estudos em escolas, com o meu serviço de pintora. Com isto, foram aparecendo situações como a procura na academia de ballet, vem o teatro que também entra na minha vida e eu começo a desenvolver não só o trabalho como atriz, mas como figurinista e cenógrafa. Acho que minha vida começou depois dos 26 anos, porque fui fazer aquilo que gosto. Terminei o meu curso e no Brasil era professora de 1.º ciclo. Contudo, fartei-me daquilo e vim embora para Portugal.
JM – Esse curso do qual falou tirou mais tarde?
MG – Sim. Eu tirei o curso ainda durante o tempo em que estava casada. Foi muito complicado porque o meu marido não queria que eu fosse para a escola.
Embora tenha sido criada com muita rigidez, nunca gostei de amarras, de entraves, criei os meus filhos e acho que tenho uma boa resposta para isso, porque tenho três amigos.
JM – E, depois de vir para Portugal, até chegar a Monchique, como é que foi?
MG – Enquanto professora, há sempre secções políticas. Naquela altura estava envolvida num grupo e havia aquela coisa que era “Sai um presidente de câmara, entra outro, e a gente está lá”. Os salários, às vezes, atrasavam vários meses o que é complicado para uma mãe como eu, que sempre criei os meus filhos sozinha. Por que é que eu me fartei? Fartei-me dessa situação de estar todos os meses com aquela preocupação de como é que eu ia sustentar a minha família. Foi esse um dos motivos que me fez vir. Estava aqui uma amiga, ela já tinha trabalho e disse que arranjaria para mim. Eu perguntei aos meus filhos, sendo que, naquela época, a mais nova tinha 15 anos, se havia algum problema em vir, só mesmo para passar um ano, porque aquilo estava-se tornando numa bola de neve. Então eles disseram “não, meu amor, vá, nós cuidamos uns dos outros” e assim eu vim.
JM – E como é que foi?
MG – Vim embora, cheguei a Albufeira e vivi lá sete anos. Comecei a trabalhar com a minha arte nas horas de folga, porque trouxe do Brasil tintas, pincéis e, quando tinha os meus dias de folga, pintava. Nos fins de semana saía com os quadros debaixo do braço e vendia, pois eu tinha que mandar alguma coisa para casa, uma vez que o salário mínimo não dava para sustentar filhos e a mim aqui. Depois, tive um contacto muito bom com a Câmara Municipal de Albufeira, que me deu algumas oportunidades de trabalho, inclusive, exposições na Galeria Samora Barros. Fui mostrando também o meu trabalho dentro do hotel “Paraíso”, no qual trabalhei na equipa de animação. Lá eu tive a oportunidade de mostrar muita coisa que eu sabia fazer. De lá, saí para trabalhar por conta própria. Trabalhei só três anos para o patrão.
JM – E depois, veio de Albufeira diretamente para Monchique?
MG – De Albufeira fui morar para Lagoa, porque, entretanto, surgiu uma oportunidade. Trabalhei em animação, pois gosto de lidar com crianças e com pessoas. Foi aí que veio uma ideia de abrir uma loja de festas, que existe até hoje. Foi uma sociedade que eu fiz com um amigo, embora não tenha dado certo e eu tenha sentido a necessidade de sair. No entanto, sempre continuei com os meus trabalhos, tinha um ateliê em casa e pintava, expunha, vendia o meu trabalho e dava aulas de pintura e teatro para a associação “Ideias do Levante”. De Lagoa, fui para Ferragudo e lá passei nove anos da minha vida. É uma vila que eu adoro, mas quis o destino que viesse para cá, porque a casa onde eu morava foi vendida e eu tenho animais, então morar num apartamento seria impossível. Foi quando me conseguiram uma casa aqui em Monchique e comecei novamente do zero.
JM – E depois montou o seu ateliêr. Pode-se dizer que foi uma espécie de mudança progressiva em várias terras até chegar aqui?
MG – Exatamente, mas o importante é que em cada lugar que passei, deixei o meu contributo. Em todo o lado em que eu volto, estão lá as sementes. Neste momento dou aulas na escola de artes em Lagoa há mais de dez anos.
JM – Quais são as sensações que a pintura lhe transmite?
MG – São várias. Às vezes pergunto-me se sou mesmo pintora, porque vejo muitos pintores que seguem um padrão e eu não gosto de seguir padrões. Eu sou movida pelo que sinto. Agora, estou numa fase de que não gosto de nada do que já fiz, é uma mudança. Não sei se é influência, mas eu acredito que tenha alguma coisa a ver com o espiritual. Eu sinto necessidade de fazer algo e faço. Por exemplo, desenvolvi técnicas, inclusive já fiz uma exposição toda pintada em vinho, outra pintada a café. Uma coisa que não é a minha praia é o abstrato, não gosto, mas acho bonito quem faz e quem trabalha com as cores e sabe bem trabalhar com elas.
JM – Qual o estilo artístico em que as suas obras se inserem?
MG – Acho que vou mais para o realismo. Eu tenho uma paixão muito grande por Miguel Ângelo, talvez por causa da história dele. Ele, na verdade, não era pintor, era escultor e foi obrigado a pintar. O Papa daquela altura obrigou-o. É a natureza dele e identifica-se muito comigo. Por exemplo, se você chegar e me disser “Meire, eu quero um quadro seu”, é ótimo porque tenho a liberdade de fazer aquilo que eu quero. Agora, você chegar e me dizer “Olha, eu quero que você me faça isto aqui, mas tem que ser assim”, eu até faço, mas já é uma coisa em que eu vou ter limites. Todos nós temos limites e eu sei respeitá-los, mas não gosto de ser limitada, não gosto de seguir um sistema, de ter amarras.
JM – Diria que a arte, para si, é aquele momento em que não há limites?
MG – Eu tenho fases. Por exemplo, esta noite tive insónias, tive mesmo vontade de ir para o ateliê e pintar, pois levei tudo para lá. Contudo, sinto que faz falta ter as coisas em casa. Embora seja a casa mais pequena que eu já tive até hoje, adoro. À noite acontecem coisas boas. Por vezes, o impulso vem mas o humano fica “hoje não, vou ficar aqui, vou ver um filme”. Eu tenho consciência disso. É como a gestação, você já está sempre preparada e você tem de por para fora, tem que parir.
JM – Para além de Miguel Ângelo, que outros artistas a inspiram?
MG – Salvador Dalí, porque acho-o maluco. O trabalho dele é divertido, adoro, mas é surrealista. Eu consigo gostar mais do trabalho dele do que o da Frida Khalo. Ela pintou a sua vida que foi muito sofrida. Salvador já faz uma viagem por mais galáxias. Para os alunos que tenho, eu vou passando um pouquinho de cada pintor. Agora estamos preparando uma homenagem a Frida Khalo.
JM – Está prevista alguma exposição para breve?
MG – Brevemente, faremos. Nesta exposição, pretendo colocar um camarim com um cenário, onde as pessoas que quiserem podem tirar uma fotografia e se caracterizarem de Frida, pôr umas flores, uns brincos grandes, pois ela era essa mulher extravagante. Isso é bonito nela, fazia-a bonita.
JM – A exposição será aqui, em Monchique?
MG – Será aqui e pretendo que seja na nossa Galeria de Santo António, que passou tanto tempo fechada e que, graças a Deus, agora está mexendo. Inclusive, a primeira exposição em que eu tive a notícia de que ela agora ia ficar aberta foi a dos meus alunos, que se chamou “Ho’oponopono”. Aconteceu recentemente e tratou-se de um trabalho que foi feito em conjunto com os alunos de Lagoa e os alunos daqui. O significado de “Ho’oponopono” em havaiano significa “sinto muito”, “perdoe-me”, “amo-te” e “sou grato”. Está agora patente na Galeria da Escola de Artes de Lagoa até ao final de agosto. A maioria dos trabalhos é dos meninos e das meninas aqui de Monchique, crianças dos 6 aos 70 anos.
JM – Para si, o que representa o Belo?
MG – Nós estamos no universo em que a beleza é uma questão complicada. As mulheres julgam muito as outras. Que é que há de errado em você dizer que uma mulher é bonita ou um homem dizer que o outro é bonito? Não significa que ele goste de homens nem que ela goste de mulheres. Eu sou apreciadora do belo. Eu contemplo a natureza e a natureza é complexa, desde o mineral ao vegetal, ao animal, ao humano. Tudo é natureza. Frida, para mim, é uma mulher linda, não só pelo seu perfil, mas também por conhecer a história dela. O olhar para ela é um olhar com muito respeito. É como eu olho Maria Bethânia. Ela é linda, tem magia, ela quando chega, ela chega. Bethânia tem uma luz própria, ninguém lha tira. Os traços do rosto dela são dela, são lindos, mas este olhar é um olhar de quem sabe contemplar o belo, porque o belo e o feio são relativos. Penso que nós humanos ainda temos muito a aprender nesse aspeto.
JM – Monchique tem influência no seu trabalho?
MG – Muita. Eu acredito que as pessoas que moram aqui não têm noção do que é que estão aqui a fazer. É um privilégio viver aqui. Cada monchiquense deveria ter essa noção, porque eu sinto a diferença quando vou a Portimão, a Lagoa, até nas pessoas. A maneira de lidar, de falar, até as crianças são diferentes e a gente ouvia sempre falar “Monchique é a montanha sagrada” e realmente é, porque se você pensar, todas as pessoas ligadas ao esoterismo vêm buscar aqui, à montanha, a energia, a força que ela tem. Eu tenho essa vertente que é o lado esotérico, o lado religioso em que nós contemplamos Deus na natureza, porque ele reparte-se. Se alguém me disser “eu sou Deus”, eu acredito, porque nós somos parte da natureza. Eu sinto-me muito mais fortalecida aqui. Ainda hoje, há um julgamento das mulheres que gostam de, por exemplo, plantas especiais, ervas, de viverem sozinhas, de viverem no meio do mato, de ter uma maneira de estar na vida diferente, pois eram taxadas de bruxas. Essas mulheres eram queimadas na fogueira e eu sou uma delas. Talvez, se tivesse vivido naquela altura, teria sido queimada ou quem tivesse uma maneira diferente de ver Deus, de falar com ele, de estar com ele. Posso dizer que posso falar com Deus a qualquer momento, falando até com você, porque na nossa caminhada encontramos uma diversidade de situações, de pessoas que chegam perto e só querem um ombro para chorar ou um ouvido para ouvir. E aí, você está aberto para isso? Nós vivemos num universo em que só vivemos a correr. Para quê? Vamos todos acabar no mesmo lugar, não precisa correr tanto. Eu diria que tempo é questão de opção. Nós temos tempo para tudo, só temos é que querer.
JM – Monchique é o sítio onde sentiu mais essa presença de Deus?
MG – Sim, porque ele está ligado à minha religião. Monchique também acredito que foi uma chamada e eu ouvi, porque nunca pensei na minha vida vir para a serra. Primeiro porque eu para conduzir sou limitada, tenho certos receios. Hoje faço lindamente, acho que é o carro que já sabe as subidas. Mas eu passei noites sem dormir pensado “meu Deus, como é que eu vou subir aquela serra? E chovendo, como é que vai ser?”. Mas vim, da noite para o dia, aconteceu. Voltando à ligação ao espiritual, nós temos no nosso país uma diversidade de religiões, o nosso povo é um bocado voltado para as mesmas. Eu nasci num berço Espírita Kardecista e criei os meus filhos nessa formação.
JM – O que é a religião espírita Kardecista?
MG – Nós acreditamos na reencarnação, na pluralidade das existências e que estamos aqui de passagem. Ganhámos um bilhete de chegada e o de retorno está garantido. A gente não sabe a hora nem o dia e nem como vai ser, mas a vida, para nós, não acaba aqui. Somos seres espirituais habitando um corpo humano, é essa a nossa filosofia de vida. Onde é que entra a religião? Entra na paz do cristianismo. A ligação com a natureza vem da junção do negro, que chega ao Brasil, encontra o índio e tem uma outra linguagem e as mesmas crenças. Por exemplo, pode pegar um prato de frutos para oferecer a uma divindade que é, digamos, o vento, o sol, ou põr flores para Iemanjá nas águas salgadas ou num rio. São divindades às quais nós chamamos de Orixás. Eu sou uma líder religiosa dentro da Umbanda, que é a minha religião, e os líderes religiosos homens são chamados “Babalorixá”. Quando são mulheres, são “Ialorixá”. “Baba” é pai e “Ia” é mãe, então eu sou “mamãe de santo”, como se diz lá no Brasil. Essa situação de “mãe de santo”, quando coloco aquelas coisas na cabeça, as guias no pescoço, e se incorpora essas divindades, é algo que eu sei que dentro da limitação dos seres humanos a gente tem que respeitar. Eu não sou aquela pessoa que vive com as guias no pescoço e vestida de baiana, eu visto dentro do meu espaço. Muita gente sabe quem sou eu, que essa paz é a minha natureza. É isso que me fortalece, o meu pé descalço na terra e o cantar para Deus e para os orixás em vez de ficar a rezar, louvar, agradecer a vida, contemplar a natureza e, principalmente, cuidar dela, que é essa a nossa tarefa.
JM – Como tem sido a adesão das pessoas de Monchique ao seu ateliê e à sua arte?
MG – Muito boa. Monchique abraçou-me.
JM – Um bocadinho mais atrás, tinha falado da questão do teatro. O que é que a fascina nessa área?
MG – Liberdade. A liberdade de expressão, de tudo, tanto na pintura, como no teatro. Onde foi que eu encontrei o teatro? Começou mesmo nessas questões de perceções políticas, porque houve um ano em que nós tivemos um senhor num outro partido, que na altura era o PT. O grupo ligado à educação achou que aquelas professoras não tinham que estar ali e colocou cada uma num lugar. Nós, em vez de estarmos na sala de aula, estávamos arrumando papéis ou limpando coisas. Então, o que é que nós fizemos? Não nos conhecíamos, aconteceu um momento em que estávamos cinco professoras num lugar sentadas e tivemos uma ideia. “E se nós fôssemos ao presidente da câmara e apresentássemos um projeto ligado à cultura para, por exemplo, divulgar literatura infantil nas escolas através do teatro?”. A reação do senhor foi incrível. Embora não fosse do partido em que nós trabalhávamos, ele disse assim “olha, fantástico, vamos botar para frente o projeto” que se chama “Biblioteca Itinerante” no qual o livro é o principal veículo, desde divulgar, ensinar a criança a apreciar quem é o autor, a editora, fazer esta lidar com isso. Contudo, o mais importante é ler para nós e depois dar corpo, dar vida àquele livro. Funcionou e está funcionado até hoje, há 20 e tal anos.
JM – Dar corpo pela questão de fazer uma peça de teatro?
MG – Sim. Depois de fazermos todas as salas de aula, todas as escolas, nós mudávamos de livro e era interessante como as crianças gostavam daquele momento, dávamos bagagem para a professora trabalhar durante a semana toda nas diversas disciplinas. Matemática, geografia, história, qualquer livro, era muito bonito. Recentemente, fui ao Brasil e tive a oportunidade de estar com elas, o que foi gratificante. A partir daí, eu fui-me interessando por fazer e participar em oficinas, pois eu não tenho formação em teatro, eu aprendi o teatro amador. Mas aqui, quando cheguei, fui solicitada pelo pessoal das “Ideias do Levante”, sabendo que eu já tinha essa vertente no Brasil, se eu não queria dar uns workshops, umas formações às crianças. Assim começou e eu tive oportunidade de apresentar vários espetáculos no auditório de Lagoa, em que peguei textos pequeninos como “A cigarra e a formiga”, e transformei em sete páginas, adaptando à situação atual.
Aqui em Monchique, está a nascer um grupo, composto por seis raparigas pré-adolescentes, no qual já estamos a trabalhar um texto que acredito que, até ao final do ano, já esteja no palco. Temos o apoio da Cooperativa de Monchique, porque aqui não há um espaço com palco ainda, infelizmente, embora eu espero que um dia venha a ter, mas a Cooperativa tem um pequenino, mas têm. É um espaço maravilhoso e é lá que nós estamos ensaiando e dando vida ao trabalho. As crianças gostam e é ótimo porque eu vejo-as com a dificuldade muito grande de colocar para fora o que têm, devido à timidez, à vergonha, logo o teatro ajuda a soltarem-se, a perder essa timidez, a brincar.
JM – Por que razão é que decidiu fazer com que os seus trabalhos fossem além da tela?
MG – Partindo do princípio de que a arte é para todos. Se você fizer uma pesquisa, quantas pessoas já entraram numa galeria para apreciar uma obra de arte? Poucas. Quando estou a pintar a céu aberto, tenho essa perceção de que aquilo vai ser contemplado por todos, não só por aquele que pode pagar uma obra de arte, mas também por aquele que não pode pagar e que tem o direito de ver essa expressão, de sentir. Quando você para e diz “está bonito”, eu gosto, foi movido por um sentimento e é isso que me leva a pintar assim a céu aberto, eu acho fantástico.
JM – Encontra diferenças entre as culturas portuguesa e brasileira?
MG – Penso que a comunidade portuguesa teve muito tempo oprimida, então até mesmo ao criar os filhos não são tão amorosos. Nós, brasileiros, somos um povo mais sorridente, mais caloroso. Uma dificuldade que eu encontrei aqui aconteceu com um diretor do hotel Paraíso, onde trabalhei, que me chamou a atenção e me disse assim “você sorri muito e às vezes o sorriso é mal interpretado, principalmente pelos homens”. Eu acho que me fiz entender, não é? Mas isso é um hábito natural nosso. Quando chega ao aeroporto, você já sente a diferença. A maneira de falar, de estar. Contudo, se hoje você me perguntar o que é que eu sinto por Portugal, eu amo Portugal, é a minha segunda pátria. Talvez retorne ao Brasil, sim, porque por opção eu vivo com os meus animais, mesmo por opção, uma vez que eu acredito que não há mulher que viva sozinha porque quer. Contudo, sei que eu não poderei viver sozinha por muito tempo, acredito que vou precisar de estar perto, pelo menos, da família, porque a gente vai precisar mais de atenção, de certos cuidados, de carinho.
A única coisa que eu estranhei mais também não foi difícil de lidar, partindo do princípio que o governo de Salazar não acabou há muito tempo. Eu tenho problemas até com o meu povo, porque há brasileiros que chegam aqui e dizem assim “português é um povo muito bruto, muito grosso”. Eu pergunto-lhes se eles conhecem a história. A gente tem que buscar a razão, o porquê. Não é que é bruto, falam com certa rigidez, porque não podem falar de outra maneira, não aprenderam, não foram criados assim. A gente não pode cobrar do outro aquilo que o outro não tem ou não teve. São frontais, são muito frontais. Agora, os jovens já estão muito diferentes, nota-se. Eu dou-me lindamente com toda a gente, não tive dificuldade em lidar com ninguém, porque também acho que sou esse bichinho meio camaleão que se vai ajustando a toda a situação.
JM – Quais são os seus planos para o futuro?
MG – Para além da peça de teatro que pretendo realizar ainda este ano com o grupo, e espero que o grupo cresça, gostava também de trabalhar com adultos, com seniores, principalmente, porque acho que os idosos precisam. Tive essa experiência no Clube Avô, em Albufeira. Durante três anos, fui encenadora de teatro e era fantástico aquelas mulheres no palco, com toda aquela vivacidade, e os netos a verem aquilo. Quando leem o texto estão a exercitar a memória. Eu acho isso muito importante e pretendo desenvolver esse trabalho aqui com idosos, até ao nível de voluntariado. Eu estou aberta a isso e já bati em algumas portas, já deixei esse desejo, tanto na câmara como em alguns lugares. Vamos ver se alguma porta dessas ajuda, porque o dinheiro nem sempre é importante. Como disse, gosto de deixar sempre um rasto por onde passo e que seja de flores, que seja bom. Depois, a exposição da Frida e outra minha, porque ainda não fiz uma minha aqui. Já a estou preparando e vai ser uma exposição muito voltada para o espiritual.