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Zé Ventura em «Retrospetiva»: Visita a uma casa que respira arte

Zé Ventura, mulher, pintora, artista plástica, abre a porta de suacasa com um brilho no olhar. Um brilho líquido, entusiasmante e transparente. Tínhamos marcada uma conversa sobre a sua obra. Um vasto trabalho de pintura, tecelagem e colagens. Ao entrar, percebemos que não é uma casa qualquer, de uma pessoa qualquer. Cada recanto respira arte, pintura, cor. A artista conduz-nos até a uma sala ampla, onde está uma mesa gigante à proporção de algumas das telas que adornam as paredes. Confidencia-nos que gostaria de abri-la «uma ou duas vezes por mês para ter contacto com as pessoas, para mostrar apenas os trabalhos, não como espaço comercial».

Grandes telas escondem-se a cada recanto. Acompanham-nos, transportam-nos para cada estação do ano, para o mar, para paisagens e pessoas. Um conjunto de cilindros tecidos assemelham-se a telescópios que nos elevam o olhar até ao primeiro andar. Lá, uma sonoridade quase impercetível inunda o local como se fosse soprado pelas paredes. Ali, faz-se arte. Sentámo-nos, tendo como apoio uma pequena mesa ladeada por um enorme tear. As peças artísticas vão-se desenvolvendo por elas. Zé Ventura explica-nos: nunca sei como vai ficar um trabalho quando o inicio, vai acontecendo à medida que o vou fazendo», mas todos têm um fio condutor, que identifica o seu traço, a sua personalidade. Confessa que «há artistas que gostam de explicar a sua obra», mas que ela não, pois quer «deixar a cada pessoa a sua leitura. Eu própria,màs vezes, descubro coisas que não tinha observado logo à primeira vista». Descreve que a sua «arte não é totalmente abstrata» até porque «ao dar título às obras já leva as pessoas para algum conceito». Quanto à evolução «acho que me repito de alguma maneira», no entanto, põe  a hipótese que para «outras pessoas possa ser diferente».

Apesar de outras cores que possam aparecer no seu trabalho, este tem «sempre a influência do mar». E com um sorriso, afirma que «se Monchique tivesse mar, nunca sairia daqui». Vieira da Silva também «me influenciou muito, tanto na obra, como na maneira de ser». A artista tem muitos retratos de mulheres que «não representam ninguém, em especial, pois «sempre fiz caras». E recorda que as faz na máquina de costura. «Coloco o papel, e os rostos vão surgindo, saem naturalmente, nem penso e não estudo a expressão. Poderão ou não, ser autorretratos».  Por vezes gosta de «usar poemas para definir a obra» inspirando-se em «muitos escritores». Fala-nos, um pouco do monchiquense Eduardo Duarte cuja «escrita transmite imagens, sobretudo a quem conhece e gosta de Monchique, pois através da leitura do que escreve conseguem-se identificar os locais descritos no livro».

Cria, essencialmente, à tarde e à noite e os trabalhos que tem dado existência «ao longo dos anos, são muitos». Há «períodos que não faço nada, mas quando começo, faço muitos». Cada um «talvez conte uma história», mas todos são um prolongamento da pessoa que é a Zé Ventura. «Tudo acontece de um modo muito natural».

Quando se desfaz dos seus trabalhos «custa sempre um bocadinho. Havia alguém que dizia que são como os nossos filhos. Mas depois passa», confidencia. A pintura sempre fez parte da sua vida. Desde pequena que desenha e foi crescendo com isso. «Gostava de poder dizer que vivo só do que faço», no entanto, «não dá», todavia nunca pensou noutra via profissional.

Das técnicas que mais utiliza nos seus trabalhos «é a pintura em papel» que marca o seu início da carreira. Realça que durante muitos anos trabalhou «apenas em papel», tal como mostrou na sua primeira exposição, que se realizou em Lagos, no início da década de 80. «Só a partir daí passei para outros suportes», no entanto, «foi também nessa década que comecei a tecelagem». Explica que esta técnica tinha como objetivo «proteger a pintura, não para vender, portanto o preço era diferente, por ser uma coisa mais comercial».

«Entusiasmei-me pelos têxteis e comecei a fazer casacos, porque uma amiga que tinha um tear, e eu tinha de arranjar um. Inicialmente comprei um igual ao da Dona Maria, que ainda esteve montado na casa dos meus pais, mas que nunca cheguei a fazer nada. Não tinha espaço. Acabei por oferecê-lo à Junta de Freguesia de Monchique. Depois, comprei este, com o apoio do Instituto de Emprego e Formação Profissional», sendo o único auxílio que teve de entidades públicas.

Atualmente, tem a exposição «Retrospetiva» no Centro Cultural de Lagos. São 90 trabalhos de diversos tipos, texturas e técnicas. Ana Lourenço Pinto é a curadora da exposição e acompanhou Zé Ventura na seleção das obras que estão patentes. Essa escolha «custou um bocadinho» admite, «porque para ter o sentido de retrospetiva tinha de ter o meu trabalho estudado, fotografado e organizado e não está». No entanto, «tenho lá um desenho de caderno, de 1962, que a minha mãe transformou em bordado », pelo que «tenho trabalhos desde essa altura até hoje. Alguns já foram expostos noutros locais, outros não. Por exemplo, tenho agora uns trabalhos em pano cru muito grandes, porque já não tenho espaço para as telas».

«Retrospetiva» está patente
até dia 28 de julho e conta com pinturas, em quadros e pano cru, tecelagem e colagens, algumas «utilizando tecidos que fazem parte da história de vida» da artista. As frases de José Tolentino Mendonça servem como que legenda de cada parede da exposição. Uma junção entre a pintura e a escrita.

Depois de terminada a nossa conversa mais formal, fomos convidados a subir mais um andar e aí viu-se o horizonte, os telhados das casas e as andorinhas. Uma perspetiva diferente das ruas de Monchique que sempre conhecemos.

Sem aviso prévio e sem termos tempo para digerir toda a arte que se ia cruzando connosco a cada degrau, descemos, e fomos até ao interior da terra e das cores dos quadros que pinta. Para um tesouro guardado, acondicionado e que pode surgir a cada momento numa exposição perto de si.

A visita ao universo Zé Ventura acabou. A porta fechou e fica o convite de descobrir quem é esta artista na exposição que decorre em Lagos.

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