Narciso VII
De maneira que respirei fundo, à procura de soluções. Arranhei a garganta com duas golfadas de ar.
Nada.
Repeti o gesto.
Nenhuma reação. O senhor Narciso permanecia imperturbável. Dormia como um santo numa ermida.
Aproximei-me um pouco mais, lembrei-me dos tuberculosos, e recorri à farsa de uma tosse guardada como uma chave preparada para abrir situações do género da que me encontrava no fundo dos pulmões.
Não resultou, embora me ardesse a garganta e os olhos pulassem para fora das órbitas.
Aproximei-me da estante, peguei num livro ao calhas: a Divina Comédia; Depois noutro: As Vinhas da Ira; E depois noutro: Cartas a um Jovem Poeta. Folheei-lhe as páginas com dedos e olhos de prestidigitador, à espera que um pensamento chegasse devagar em meu auxílio. A minha ansiedade não tinha travões. Mesmo assim, fiz o máximo de silêncio que a respiração me permitiu, já com receio de o desadormecer e de me deparar com as inelutáveis consequências do seu mais do que provável e escusado mau-feitio.
Lá fora, o Mundo continuava a existir. O aguaceiro na janela não era mais a imagem de uma televisão dessintonizada. A tempestade tinha passado. Uma frente quente acalmara a atmosfera, até transformar chuva numa superfície vaporosa levitando como poeira sobre os prédios. A divisão da casa era ampla, muitos metros quadrados de literatura. Mas a presença do senhor Narciso, rodeado por tantos livros e por um quadro do Van Gogh retratando uma paisagem ferroviária na parede entre as janelas, parecia deixar muito pouco espaço livre para a respiração de outras pessoas ou de outras realidades que não as inventadas. Apesar da nitidez, o ar estava saturado.
Indiferente ao fracasso das minhas tentativas, só volvidos alguns minutos o senhor Narciso resolveu, finalmente, acordar, depois de ter mudado o corpo amolecido pelo sono para uma posição incómoda na cadeira, e permanecer, por um tempo que dava ares à eternidade, completamente recostado, com a cabeça pendida para o lado e com um fio de baba pendurado à boca a lembrar um pega-monstro em luta contra a gravidade.
Despertou aos solavancos, no modo paranoico dos carros sem gasolina, quase delirante, vociferando, primeiro, vocábulos ininteligíveis, orações tortas, desprovidas de nexo, a que se seguiram expressões em latim, dessas que carregam o tempo todo sobre as costas. Depois, desmoronou-se num chorrilho de palavras biliosas, sem roupa interior, dessas que baixam de repente as calças e se reproduzem sem pudor no meio das pernas. Sacudiu a cabeça como um cão na praia e olhou para mim.
Naturalmente, o senhor Narciso não tinha sentido a minha presença. Ao abrir os olhos, bocejou como um caixote do lixo com a tampa aberta, esticou os membros até os ossos, numa crepitação de lume, perderem a elasticidade e caindo, por fim, num estado de placidez absoluta. O senhor Narciso comportou-se como se eu tivesse estado acordado o tempo todo ou como se a minha presença ali fosse o prolongamento espontâneo de um sonho negociado à realidade.
Fixou-me e disse:
– Meu jovem delfim, sempre pontual como os sinos das catedrais.
Desenhei um sorriso. Dizer-lhe que estava ali há muito tempo era uma informação completamente desnecessária.
– No princípio desta cadeira era o verbo sentar. Temos muito que conversar – disse, incitando-me a ocupar o lugar vago na cadeira à sua frente.
Não me perguntou como estava, não falou do estado do tempo, dispensou o calor das introduções inúteis e embateu diretamente no gelo da minha curiosidade:
– Gostava que o meu jovem delfim me auxiliasse num projeto. Como sabes, o teu castigo está mais do que cumprido, a tua dívida ao teu bom nome está mais do que paga. És só um puto. Os pequenos delitos que cometeste não justificam a reclusão perpétua numa biblioteca. A partir de agora, estás nisto a título inteiramente gracioso e voluntário, certo?
(Pro bono, terá sido uma expressão que, certamente, terá utilizado a dada altura desta conversa. À distância em que me encontro dos acontecimentos, não consigo ser fiel às circunstâncias específicas em que o fez.)
– Certo. Pela minha honra e com a graça de Deus – respondi como um cruzado.
– Deus não é para aqui chamado. Isto é só e só entre nós! – alanceou.