Sugestão de leitura

Vá, acredita na vida eterna, mal não te faz!

Nada a Temer - Livro - WOOKNada a Temer, por Julian Barnes, Quetzal Editores, nova edição em 2020, é um livro singularíssimo, abarca meditações familiares, memórias de pais que adoeceram e desapareceram, meditações sobre a mortalidade e o medo da morte, tudo calibrado por esse dom supremo da escrita que superioriza a prosa e um dos mais importantes homens de letras do Reino Unido. Podem-se tomar frases soltas, ou parágrafos longos sobre esse itinerário familiar, tudo ganha coerência e luminosidade, este homem foi bafejado pelo dom da escrita. Assim: “Não acredito em Deus, mas sinto a Sua falta”. Como qualquer outro ser humano, foi confrontado com o imprevisto, com gestos inopinados, dele próprio ou dos outros. Recorda que a primeira vez que entrou numa igreja foi para ir ao casamento de um primo que ficou espantado quando viu o pai ajoelhar-se num banco e cobrir a testa e os olhos. “Foi um daqueles momentos em que os nossos pais nos surpreendem, não porque tenhamos ficado a saber algo de novo sobre eles, mas porque descobrimos mais uma zona desconhecida. O meu pai estava só a ser delicado? Não faço ideia”. E dá-nos uma meditação íntima: “Dada a base familiar de crença ténue combinada com irreligião dinâmica, eu podia, na rebelião da adolescência, ter-me tornado devoto. Mas nem o agnosticismo do meu pai nem o ateísmo da minha mãe chegaram alguma vez a ser completamente expressos, muito menos apresentados como atitudes exemplares, por isso talvez não justificassem a revolta”. Inicia os seus estudos, frequenta um colégio de religiosos, e recorda-se num pensamento do filósofo francês Blaise Pascal. “Se acreditamos e no fim se provar que Deus existe, ganhamos. Se acreditamos e se provar que Deus não existe, perdemos, mas não tanto como perderíamos se decidíssemos não acreditar e só depois da morte descobríssemos que Deus existe mesmo”. As meditações e desabafos prosseguem, não sei se é propositada esta seriedade com diversão, ou se o fito do escritor é elaborar estas reflexões na mais rotunda das sinceridades: “Se me intitulei ateu aos 20 e agnóstico aos 50 e aos 60, não é porque tenha, entretanto, adquirido mais saber: apenas mais consciência da ignorância. Como podemos estar certos de que sabemos o bastante para saber? Apesar de estarmos mais informados, não somos mais evoluídos nem certamente mais inteligentes do que os materialistas neodarwinistas do século XX”. O que me galvanizou nesta leitura foi a desconstrução de Julian Barnes de falácias e mistificações oriundas de quadros de fanatismo de gente religiosa ou dita descrente, vai direito aos argumentos e jamais fecha uma porta ou se compromete com imagens de uma fé que nele não existe: “O medo da morte substitui o medo de Deus. Mas o medo de Deus – um princípio primitivo inteiramente razoável, dado o risco de viver e a nossa vulnerabilidade a raios e meteoritos de origem desconhecida – permitia ao menos negociar. Nós queríamos convencer Deus a deixar de ser o Vingador e rotulámo-lo de Infinitamente Misericordioso; passámo-lo de Antigo a Novo, como o Testamento e o Partido Trabalhista. Montámos a Sua imagem numa calha e arrastámo-la para um lugar com mais sol. Não podemos fazer o mesmo com a morte. Com a morte não podemos regatear, nem negociar nada; ela recusa-se simplesmente a chegar à mesa das negociações”.

É uma longa e saborosa viagem que envolve pensadores, artistas de várias matizes, há relatos pessoais e aquela atitude permanente de quem parece estar a registar observações num diário íntimo, veja-se este exemplo: “Os meus amigos agnósticos e ateus em nada se distinguem dos meus amigos declaradamente religiosos em matéria de honestidade, generosidade, integridade e fidelidade – ou no contrário. Isso é uma vitória para eles ou para nós?”. Um pouco mais adiante, depois de nos falar da sua avó já em estado de demência, questiona o passado, a memória, a formação, a vivência das coisas: “Vivemos como criaturas de livre e puro arbítrio, quando os filósofos e biólogos evolucionistas nos dizem que é tudo uma grande ficção. Vivemos como se a memória fosse um depósito de bagagens bem construído e com pessoal eficiente. Vivemos como se a alma – ou espírito, ou individualidade, ou personalidade – fosse uma entidade identificável e localizável, e não uma história que o cérebro conta a si mesmo. Vivemos como se a natureza e a educação fossem pais iguais, quando a evidência sugere que a natureza tem a faca e o queijo na mão”. Há uma leitura ascética e por vezes truculenta deste apanhado de apontamentos, por vezes precedida da história de um pintor ou de um romancista, são registos que dão enorme prazer, recordam outros grandes escritores como Albert Camus ou Montaigne: “Somos o que fizemos; o que fizemos está na nossa memória; o que recordamos define quem somos; quando esquecemos a nossa vida, deixamos de existir, mesmo antes da morte”. Falei em Camus e Julian Banes lembra-o, o notável escritor francês achava que a vida não fazia sentido mas acreditava que apesar disso, devíamos enquanto aqui estamos inventar regras para nós próprios, e adianta: “A sabedoria consiste em deixar de fingir, em rejeitar o artifício. A sabedoria é a recompensa virtuosa para os que examinam pacientemente o funcionamento do coração humana e do cérebro humano, que aceitam a experiência e adquirem assim compreensão da vida: ou não é?”.

Nada a temer não é um romance biográfico, aliás, Julian Barnes observa que todos os romances são biográficos, o que significa que são o estudo da vida. É um romance singularíssimo, onde se mesclam notas, interpretações da vida alheia, um regresso emaranhado de ternura à infância e à vida dos pais e do irmão, são comentários inspiradores, onde o autor dá consigo a confessar que não sabe bem onde começa a sua própria vida e se passa a fronteira da ficção, para proveito do romance, põe tudo em condicionais: “Se coragem significa não assustar os outros, ou se é algo muitíssimo maior e provavelmente fora de alcance. Se tirei a limpo – ou até mais do que a limpo – esta coisa da morte”. Assim sumaria aquilo que ele considera ser três quartos do percurso da sua vida, é prematuro dizer adeus, deve-se fugir a um final que pareça ser definitivo, tantas vezes contrário aos movimentos da roda do destino.
Um livro notável, qualquer coisa como um abalo sísmico entre a fé em Deus e a convicção de que tudo acaba no nada.

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