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Bombeiros

Crónica publicada na edição 477, de 31 de agosto de 2023

Eu e o Rui vamos à frente. Ele segue por um trilho que só existe graças às cabras que na sua passagem comem as ervas que se lhe metem à frente. Eu sigo-o, uns metros depois, ouvindo a minha respiração soluçar atrás dos passos dele. Quem nos vir de longe, distingue dois galifões debaixo dos capacetes vermelhos já sem brilho de tanto fumo, de tanto sol, de tanto relento. Não dormimos nada na noite anterior. Está um calor de encarquilhar tudo, o suor dentro das fardas cose-nos por inteiro, não existe parte do corpo que não esteja pegajosa, irritada e a cheirar a azedo. Não existe! As pontas dos dedos dos pés, dentro das botas, começam a ficar brancas: pele morta. É isto que consigo lembrar.

De manhã, dois ou três minutos antes da troca de turno, tocou a fogo. O Rui tomou a dianteira, apesar de os colegas que nos substituiriam na rendição já se encontrarem no quartel, preparados para tudo, que é a única preparação que se exige a um bombeiro. Disse-lhe que se fosse embora, que não valia a pena, estavam lá outros para fazer o trabalho, facilmente iriam dar conta do recado, o incêndio era próximo, numa mata de eucaliptal gerida por uma grande empresa de papel para a qual o Rui tinha trabalhado antes de ter sido despedido com a justificação de andar a sabotar as novas plantações. Foi o último emprego dele, antes de se dedicar à corporação a tempo inteiro.

O Rui ergueu o braço fazendo com que a manga do casaco aplicasse um garrote ao músculo, a todo o momento as costuras ameaçavam romper à investida daquela bisarma musculosa.

– Só vão controlar aquilo depressa se eu também estiver lá! Conheço aquilo muito bem, como as costas das minhas mãos, como as palmas não, porque as tenho sempre ocupadas com trabalho, e, além disso, ir a esta ocorrência é uma forma de apagar os meus erros – vaticinou. Pegou no capacete e no passa-montanhas e enfiou-se no camião, pronto a ligar as sirenes.

– E a Ana? E o miúdo? Ainda agora disseste que tinhas de os ir buscar ao hospital hoje…

– Depois disto acabar! – respondeu.

O Rui ergueu o braço fazendo com que a manga do casaco aplicasse um garrote ao músculo, a todo o momento as costuras ameaçavam romper à investida daquela bisarma musculosa. Tocou nuns botões no tablier e ouviu-se, primeiramente, uma sirene rouca, que mais parecia um arroto prolongado, seguida de uma outra, mais estrepitosa, engasgada em si mesma pela intensidade com que era acionada por aquela mão confiante e corajosa. Acomodando-se no lugar destinado ao de chefe de equipa, o Rui perguntou:

– Vens ou tenho de arranjar outro motorista?

Fui. O incêndio apagou-se como velas sucumbidas ao sopro de uma criança no seu aniversário e, em poucas horas, antes do almoço, estávamos de regresso ao quartel, não sem antes, ao sair do camião, ter voltado a torcer o meu joelho direito, aquele que, em vez de pressentir a mudança do estado do tempo, adivinhava a mudanças no estado de espírito.

O Rui despediu-se de mim com um sorriso sincero, cheio de qualquer coisa indefinida que tinha entrado para dentro dele e que se fazia ver nos olhos, uma coisa qualquer sem nome, que me fez duvidar se sabia quem era ou se sabia realmente o que era existir verdadeiramente antes de a mulher ter dado entrada no hospital para dar à luz o primeiro filho do casal.

– Até já! – disse, na sua voz grande e animalesca, maciça, quase visível como uma sombra e que parecia continuar a falar, mesmo depois de o Rui sair dos lugares onde a usava. – Vou agora mesmo buscá-los ao hospital!

Fiquei a acompanhar a voz do Rui como se cada um tivesse ido para seu lado, agarrado às lamentações e agoiros do meu joelho que uma bolsa de gelo embrulhado numa toalha não conseguiam silenciar. Fiquei no quartel, talvez preso pela voz do Rui, que não tinha ido embora ainda, ou talvez tenham sido apenas as birras do joelho, que, finalmente, pareciam começar a ceder, quando vi surgir a sua careca de lâmpada dentro do carro que abrandava a marcha e parou em frente aos portões do quartel.

– Levanta-te e anda, Lázaro! – gritou de dentro do habitáculo, com o braço de fora, cavando o ar com a mão, num gesto incontido que me chamava para junto de si.

E andei. Ao fim de um par de horas agarrado ao joelho, não havia dores a atravessar-se no caminho em direção ao meu sorriso. Espreitei para dentro do carro. Sentada ao lado do condutor, vi a mulher do Rui e, no banco de trás, a dormir numa espécie de ovo de dinossauro de plástico escuro e almofadado, estava o recém-nascido. Reparei que o Rui ainda não tinha trocado de roupa, continuava fardado, vermelho e azul, dos seus gestos ainda caía um cheiro a cinzas.

Quando ia dizer qualquer coisa, uma voz turva, mergulhada em chuviscos sonoros, irrompeu dos altifalantes. Era a colega da central a convocar todos os presentes para se reunirem na sala de comando. Por não mais do que dois segundos após a comunicação, o Rui olhou para mim com um olhar de infinito. Depois olhou para a mulher, que lhe disse:

– Vai. Eu e o menino ficamos bem.

Sentada ao lado do condutor, vi a mulher do Rui e, no banco de trás, a dormir numa espécie de ovo de dinossauro de plástico escuro e almofadado, estava o recém-nascido. Reparei que o Rui ainda não tinha trocado de roupa, continuava fardado, vermelho e azul, dos seus gestos ainda caía um cheiro a cinzas.

Na sala de comando, o comandante explicou: o assunto era sério. Durante o dia, quatro homens tinham desaparecido numa aldeia próxima. De acordo com informações da GNR, dois deles tinham saído de manhã para limpar um poço. Mais tarde, um terceiro veio a desaparecer também, depois de ter sido alertado pela esposa de um desses homens, preocupada pela falta de notícias do marido, que lhe tinha dito que a coisa se faria até à hora de almoço. O filho desse terceiro homem ficou também incontactável poucas horas após a mãe lhe ter dito que o pai tinha saído de casa à procura dos dois primeiros homens.

O local onde os homens se encontravam era uma das poucas áreas agrícolas ainda produtivas e, talvez por isso, resistia à pressão urbana. Era uma área confinada, mas rica em águas subterrâneas e nascentes, pelo que proliferavam as captações de água por via de poços, furos artesianos ou horizontais.

Depois de recebermos as instruções do comandante, eu e o Rui seguimos a toda a velocidade num jipe. Connosco seguiam dois colegas mais jovens que haveriam de carregar o equipamento de socorro, garrafas de oxigénio e máscaras. Ficaram para trás mal chegámos ao local, por isso é que não me recordo deles no nosso trajeto, aquele em que só eu e o Rui parecíamos existir neste mundo: eu numa prova de esforço e ele um sopro leve na paisagem.

(Continua)

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