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50 anos do escutismo e guidismo, em Monchique: “Não é do sofá que se veem as estrelas”

(Reportagem publicada na edição 475, de 30 de junho de 2023)

O Agrupamento 383 do Corpo Nacional de Escutas e a 1.ª Companhia de Guias de Monchique foram fundados há 50 anos pelo padre Domingos. Uma união fraterna que continua e prevalece e que se viu espelhada no acampamento conjunto, no qual todos vestiam a mesma camisola. Entrámos em campo e testemunhámos o espírito, a vivência e essência dos movimentos.

Ouvem-se risos ao longe. Risos que não estão sós, porque são acompanhados por gritos, canções, conversas altas. É o acampamento comemorativo dos 50 anos da fundação do Agrupamento 383 do Corpo Nacional de Escutas e da 1.ª Companhia de Guias de Monchique. Logo à entrada, após transpor o pórtico feito com corda, um grupo de meninas tentam agarrar balões de água com as mãos, enquanto outras tentam fazer deles bolas de basebol. Claro que a água se espalha por todo o lado e é como um batismo a dar as boas vindas a quem chega e aos que se divertem. De repente, alguém chama, porque mais abaixo antigos escutas e guias, pais e algumas crianças brincam ao jogo “Quem é Quem?”. Nas imagens, estão as fotografias dos muitos chefes que têm passado por ambos os movimentos monchiquenses. Entusiasmadamente, vão baixando as placas à medida que respondem “sim” e “não”. No escutismo e no guidismo, aprende-se segundo o método do seu fundador Baden Powell (BP), ou seja “através do jogo, aprender fazendo”, explica-nos Joana Fernando, chefe da 1.ª Companhia de Guias de Monchique.
Há uma alegria no ar, um ambiente de camaradagem. Todos partilham do mesmo entusiasmo e da comunhão de estarem juntos.

Ainda um pouco mais abaixo, há o slide. Elementos de uma fila, mais ou menos, bem organizada, porque “quem não está na fila não pode participar”, diz uma chefe, vão subindo, um a um, para o andaime onde são colocados os arneses e os cintos, que são verificados inúmeras vezes se tudo está bem preso, seguindo-se um saltinho e um deslizar até aos dois chefes que fazem a segurança. Rapidamente, quem deslizou traz a corda de volta, porque há muita gente à espera e não é só diversão, também tem de haver entreajuda. Ninguém se recusa, todos participam, todos querem ficar com um friozinho na barriga, para mais tarde recordar. A contemplar esta animação, estão quatro escuteiros, sentados, dizem eles que estão na fila. Talvez pelo tamanho e por serem pioneiros já têm algum estatuto que permite beneficiarem de uma espera mais confortável. Partilham connosco, apesar de terem algum receio do gravador o que sentem por estarem ali. Para José Carlos, “este acampamento é diferente dos outros, porque é meio século de história, é um marco importante no nosso agrupamento”. Já Teresa Penteado, que está “mais afastada por estar na faculdade”, admite que veio “para recordar. O acampamento dos 50 anos representa muitas memórias”.

Enquanto ainda falávamos com este grupo, surge-nos um veterano. Vasco Feio. Rodeado da sua patrulha “Texuga”, que tem uma bandeirola peculiar e original, conta-nos numa enorme alegria que entrou para o escutismo dois anos depois da sua fundação, com quatro anos. Confidencia-nos que no seu primeiro acampamento, que se realizou no Barranco do Preto, deparou-se com uma manada de “monstros” a meio da noite. “Um pastor conduzira as suas vacas para dentro do acampamento”, o que gerou o caos e “para uma criança de 4 anos, acordar e só ver sombras, fez com que se tornassem em monstros. Como bons monchiquenses, defendemo-nos com o que tínhamos à mão e eram pedras e paus para cima das vacas, que começaram a correr para junto do pastor, enquanto este gritava que ia voltar, e nós gritávamos “vitória”.

Carlos José, Agrupamento 383 do Corpo Nacional de Escutas e Joana Fernando, chefe da 1.ª Companhia de Guias de Monchique

O entusiasmo mantém-se no grupo de antigos escutas e guias, “que dizem ter a mesa sempre posta” e da qual retiram uma deliciosa e fofinha fatia de bolo para oferecerem. “É o bolo da mãe”, diz Isabel Feio, com o rosto a irradiar felicidade. Vão-se juntando outras pessoas, umas porque foram chamadas para falar com o JORNAL DE MONCHIQUE, outras porque estavam já ali. Até que alguém diz que ainda existe uma farda de avezinha do momento da fundação, em 1973. Pertence a São Cruz, que a vai buscar e a mostra orgulhosamente. Diz-nos que ofereceu uma boneca às “avezinhas” com aquela farda que é diferente da atual.

Para Ana Marques e Maria João, antigas guias, “voltar a campo permite rever amigos e é como a primeira vez. É como andar de bicicleta, nunca se esquece”, adianta Ana, que entrou para as guias com seis anos, um ano depois da fundação. “A companhia de Monchique foi sempre muito ativa nas atividades nacionais e nalgumas internacionais, agora mais recentemente. Lembro-me do projeto ‘Ter mãos grandes’, no qual as guias de Monchique participaram para a construção de uma padaria em Timor-Leste, por exemplo. E de outro que implicava a recolha de rolhas, para construir uma Biblioteca. Fizemos parte de um esforço conjunto e isso é fantástico. São essas pequenas coisas que são transformadoras na vida da comunidade e isso é ser guia”.

Para Ana Marques e Maria João, antigas guias, “voltar a campo permite rever amigos e é como a primeira vez. É como andar de bicicleta, nunca se esquece”.

Quanto à importância dos movimentos, Ana Marques considera que “continuam atuais, se calhar mais do que nunca, porque cada vez mais os miúdos vivem em casa, com um telemóvel na mão. Começa-se a perder a interação e a empatia, que só se consegue atingir se for treinada e se as pessoas conviveram. Portanto, hoje este tipo de movimento faz mais sentido do que nunca, porque as pessoas precisam de estar juntas, de viver, de construir”. E faz o apelo para que “venham, porque têm muito mais a ganhar do que a perder. Desenvolve-se a parte humana, intelectual, e religiosa, que também é cultura”.

Esta ideia também é partilhada por quatro guias que estiveram na fundação da companhia, como avezinhas. Aliás, no dia 24 de junho de 2023 completaram 50 anos da sua promessa. São elas, São Cruz, Mecês Nunes, Lurdes Martins e Zaia Chula que, de uma forma particular confidencia que foi guia e depois escuta, tendo ambas as promessas. Foi para o escutismo, quando foi necessário por falta de chefes e acabou por fazer parte dos dois movimentos.

Quando questionamos o que o movimento trouxe para as suas vidas, São Cruz admite ser “difícil dizer o que é que as guias me trouxeram, porque só posso dizer o que eu sou”. Mercês Nunes acrescenta que “na altura em que fomos para as guias, e pensando há 50 anos, o movimento mostrou-nos um bocadinho mais do mundo, porque a comunidade era fechada e as possibilidades de sair eram diferentes. Tudo o que nós fazíamos, as atividades que íamos ter com outras guias, contactar com outras realidades, o sair em Portugal ou no estrangeiro, foi uma abertura e um conhecimento do mundo. Foi com as guias que abrimos horizontes”. Hoje em dia, admitem que estes movimentos continuam a ser importantíssimos porque “permitem desenvolver competências muito diversificadas como o equilíbrio, a entreajuda, a competição, o caminhar, a autonomia”, aponta Mercês Nunes. E São Cruz remata que o “objetivo é sempre com a equipa. Nunca é individual. Ninguém fica para trás”.

Jogo “Quem é Quem?”

Neste preciso momento, chega Paulo Alves, atual presidente da Câmara Municipal de Monchique e antigo escuteiro, que partilha connosco que voltar a campo “é uma emoção única. Quando somos escuteiros uma vez na vida, somos escuteiros a vida toda. O escutismo é um ensinamento de vida e que me serve hoje como presidente de câmara no trabalho de equipa, no aproveitamento nas qualidades de cada um que depois se refletem num trabalho conjunto que é maior do que a somas das partes; no respeito pela opinião do próximo, pela natureza; na vontade incutida por Baden Powell de deixar o mundo melhor do que aquele encontramos. E, se isso for muito utópico, podemos começar pela nossa casa, pela nossa família, pelo nosso bairro, pela nossa vila, pelo nosso concelho e por aí fora”, adverte.

“(…) O escutismo é um ensinamento de vida e que me serve hoje como presidente de câmara no trabalho de equipa, no aproveitamento nas qualidades de cada um que depois se refletem num trabalho conjunto que é maior do que a somas das partes; no respeito pela opinião do próximo, pela natureza”

Despedimo-nos destes interessantes testemunhos e voltámos a subir. Deparámo-nos com a chefe Beta que também está no agrupamento há 50 anos. Estava rodeada pelos seus lobitos que, sem vergonhas quiseram dar o seu testemunho. Afonso Vieira foi o primeiro que nos definiu que “ser lobito é ser asseado e ouvir o que os nossos chefes nos dizem”. Para além disso, gosta dos acampamentos porque faz amizades e admite que “estar no escutismo é muito importante para a minha vida”. Logo de seguida, Clara Ferreira, que entrou para os escuteiros com sete anos e agora já tem nove, confessa que gosta de “acampar, porque faz muitas atividades”. Por último, Pedro Fernandes, que está no agrupamento há um ano e este foi o seu segundo acampamento, acrescenta que “gosto de ser lobito porque fazemos muitas brincadeiras e gosto de acampar”.

Por meio de muitos sorrisos, dirigimo-nos à entrada onde encontrámos o chefe Carlos José do CNE e a chefe Joana Fernando das Guias, que estavam na labuta do almoço. Afinal, iam ter cerca de 150 pessoas, miúdos e graúdos à espera de refeição. Explicaram-nos que o acampamento teve como ponto de partida o filme do Rei Leão e como tema “Um ciclo sem fim”, que “faz uma analogia ao nosso movimento desde há 50 anos em que há uma transmissão de responsabilidade e de querer dar continuidade ao projeto de Baden Powell através das gerações, assim como no Rei Leão, que retrata um reinado que tem de passar o testemunho e que, apesar de todas as aventuras, desventuras e peripécias, ele consegue continuar a assegurar. Para além disso, fala da amizade sem preconceitos, já que o Simba é amigo de um javali e de um suricata, algo pouco comum”, explica Joana Fernando.

“Na abertura oficial de campo rematámos com uma frase de Baden Powell ‘não é do sofá que se veem as estrelas’ e é precisamente isso. A natureza, o convívio fraterno, tem a sua essência e é isso que nós pretendemos, formar crianças e jovens que se tornem adultos e cidadãos ativos”, garante a chefe que assumiu o cargo de dirigente estagiária com 17 anos, e que nos diz que é simplesmente um cargo, porque alguém tem de ser, e “só faz sentido se for em patrulha”.
Carlos José, que é chefe dos escutas desde 2007, sublinha que organizar um acampamento como este “é um desafio e uma responsabilidade muito grande”. “É um legado que não se pode perder e tem que se fazer cumprir”, conclui Joana Fernando.

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