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Arquiteto Pedro Quintela: “O meu verdadeiro cliente é o lugar”

Entrevista publicada na edição 475, de 30 de junho de 2023

Pedro Quintela chega à mesa do parque de merendas de Aljezur com uma garrafa de água com rodelas de pepino e folhas de manjericão lá dentro e dois copos. Preparou o refresco na sua autocaravana Bamboa, onde tem vivido há dez anos, quando não está de viagem pelo mundo.

Filho do arquiteto José Quintela da Fonseca, nasceu em 1974, em Angola, passou a infância na Venezuela e estudou em Edimburgo, terminando o curso com 20 valores. A sua assumida alma de artista levou-o a escolher trabalhar sob o mote O Espírito do Lugar, em vez de estar fechado num atelier a cumprir regras à letra. Tanto que, quando trabalhou num escritório no Porto, marcava aulas de meditação às cinco da tarde para se obrigar a desligar do trabalho. As consequências desta rebeldia têm sido uma série de prémios internacionais e processos em tribunal.

Pedro Quintela faz arte com tudo o que encontra, seja pregos enferrujados ou uma ruína, vivendo conectado à natureza e com um gosto enorme pela vida. Este mês esteve em Aljezur a desenvolver, pelo segundo ano consecutivo, o Teatro de Palha, um projeto da cooperativa Lavrar o Mar que apresenta um programa cultural variado até ao dia 17 de julho.

Jornal de Monchique – O que é o espírito do lugar?

Pedro Quintela – Eu já sou arquiteto desde a barriga da minha mãe. O meu pai também era arquiteto. Comecei a faculdade em Lisboa, mas não estava satisfeito, porque os ensinamentos que nos eram dados eram muito focados nos próprios gostos do professor e isso incomodava-me muitíssimo, porque acredito que cada um de nós é um universo e que o papel de cada professor é tirar o sumo de cada aluno e não espremer o sumo dele para cima de cada um. Depois soube, através de amigos escoceses, de um professor iraquiano, em Edimburgo, cuja especialdiade é o “espírito do lugar”. Esse nome foi mesmo à frequência que eu procurava, de tal maneira que apanhei um avião e foi paixão à primeira vista. Fiquei lá. A partir daí, esse assunto do espírito do lugar aconteceu mesmo. Sabia que existia, mas não sabia onde, e lá encontrei. Tanto que hoje em dia, quando falo com os meus clientes, sou muito claro a explicar-lhes que eles são um canal para a coisa acontecer, mas o meu verdadeiro cliente é o lugar.  É o lugar que me vai dizer o que quer. A minha função como arquiteto, no meu ponto de vista muito pessoal, não é deixar uma marca. Pelo contrário, é respeitar ao máximo o lugar e entendê-lo para ver em que é que posso ser útil para valorizá-lo ainda mais.

JM – Precisaste de muito tempo para descobrir a forma como querias abordar a arquitetura?

PQ – Não, nem hesitei, porque já sabia. Aliás, há pouco quando vinha aqui ter contigo, reparei nuns fardos que estão ali espalhados e lembro-me tão bem de olhar para um fardo de palha e dizer “isto é uma obra perfeita”. Porque cresce num lugar, é ceifado num lugar e é compactado num lugar e, de repente, há uma sombra. E uma sombra cria arquitetura. É arquitetura para animais numa escala mais pequena, mas se aumentarmos de escala, há arquitetura para humanos, que foi o que a gente fez [no Teatro de Palha]. E isso é uma das vertentes do espírito do lugar: o material que é usado. Em vez de estarmos a fazer viagens e fazer mal ao território, é fazer bem usando o que já existe.

JM – Li que consideras muitos dos teus projetos “ilegais ao olho da lei”, mas fiéis aos teus “princípios de Arquiteto humanista”.

PQ – Todos os projetos são sempre completamente diferentes e eu nunca sei o resultado deles, daí que também tenha imensa dificuldade em trabalhar em projetos de licenciamento. Todos são premiados internacionalmente e, ao mesmo tempo, assumidamente clandestinos. Porque na mesma semana em que venho de Milão com o If Design Award, estou em tribunal a defender uma casa por causa de burocracias às quais costumo chamar mais de “burrocracias”. Porque não acredito nelas, especialmente as que são postas hoje em dia à arquitetura, que são as mesmas que eram postas já com o meu pai como arquiteto. E olha o que a gente evoluiu em duas gerações.

A minha função como arquiteto, no meu ponto de vista muito pessoal, não é deixar uma marca. Pelo contrário, é respeitar ao máximo o lugar e entendê-lo para ver em que é que posso ser útil para valorizá-lo ainda mais.

JM – O que te incomoda mais nessas licenças?

PQ – Tens de saber tudo, exatamente, do princípio ao fim. Ou seja, entregas um projeto na Câmara e a obra tem de ficar exatamente igual ao que tu entregaste. Só que um projeto demora um ano ou dois a crescer e eu, graças ao que eu procuro na vida, cresço diariamente. Estaria a ser infiel para com a vida se fizesse um projeto, do princípio ao fim, que já foi concretizado há um ano, ou dois ou três. Só faço um projeto de cada vez por isso mesmo, estou em obra a assumir o crescimento das obras às quais chamo mais de esculturas habitáveis, porque elas é que estão a comunicar comigo e a pedirem-me o que querem no dia-a-dia. Há coisas que, se não estás em obra, é impossível de acontecerem. Mesmo no Teatro de Palha aconteceu isso. E não houve computador, atenção, que é só uma dimensão. Eu faço tudo à mão, faço o sketch das perspetivas e faço maquete, o que hoje em dia já se faz muito pouco. Nem sequer tenho computador.

Sketch do Teatro de Palha

JM – E guardas todas as maquetes?

PQ – Tenho tudo guardado, o meu espólio. O processo é esse: conceito, desenho, maquete, obra. Sem estes quatro passos, para mim é uma obra incompleta. Porque estás sempre a evoluir, de dia para dia, eu é momento após momento, e há coisas que não vês quando estás a fazer um desenho. De repente, em obra, descobres que ali ao fundo há uma árvore interessantíssima, que foi o caso do Teatro de Palha.

JM – Em que consistem as etapas do teu processo criativo a que chamaste de adaptação, transformação e cristalização?

PQ – Adaptação é quando chegas ao lugar, transformação quando começas a entender o que o lugar quer e começas a intervir nele, e cristalização quando está tudo impec e o lugar está contente contigo e tu estás contente com o lugar. Há satisfacão, é bilateral, está tudo certo. Não é só certo de olhar, mas certo de sentir, de feeling. Tenho todo o tipo de pessoas a visitar as minhas obras, e para mim a visita de um cego muitas vezes é mais importante. Também adoro ter crianças, porque elas são do mais puro que há. Mas mesmo que sejam coisas que eu não gosto de ouvir, terem dito com sinceridade já me enche a alma.

JM – Alguma obra tua já teve de ser demolida por não estar devidamente licenciada?

PQ – Não, é só conversa. Até me pedem desculpa. É que a dificuldade é no processo até acabar a obra. E eu percebo, porque já tive conversas mais sérias com fiscais e presidentes da Câmara e, de facto, 90% das pessoas que fazem estas coisas é para fazer falcatruas, para abusar dos istema. Mas eu faço pelo contrário, para agradar mais e mais. A mim, aos clientes e ao lugar em geral.

JM – Como foi tornares-te um arquiteto com uma abordagem tão diferente da que o o teu pai usava?

PQ – Foi bastante complexo, mais para ele do que para mim, se calhar. Houve um crescendo exponencial em termos de arquitetos. O meu número de ordem já deve ter uns seis dígitos e os da geração do meu pai tinham para aí três. E a meia-dúzia de arquitetos achava-se os reis do mundo. A nossa educação, infelizmente, como arquitetos faz-nos ser uns grandes egocentristas. A meu ver, o maior arquiteto que pode haver é a pessoa mais humilde, porque se não percebes as pessoas, não percebes o lugar e só impões o que queres fazer à tua maneira. Na realidade, não falávamos muito de arquitetura em casa. O meu pai fazia espaços comerciais e eu restauro ruínas. Com todo o respeito, eu disse-lhe que ele era topo de gama mundial na prosa e eu sou topo de gama na poesia.

JM – O que significam para ti os prémios que vais recebendo?

PQ – O primeiro significou alguma coisa, porque foi o primeiro, mas a partir daí não fui buscar mais nenhum. Tenho o convite para ir às galas, mas percebi que é uma passerelle de egos e digo que estou ocupado. Mas não é verdade, tenho imenso tempo livre e é o tempo livre que me faz ser um bom arquiteto, e é a boa arquitetura que me faz ter muito tempo livre também. Mas não me alimenta a alma ir buscar os prémios, estou a perder marés, sóis, conversas como esta.

Vencedor do A’Design Award

JM – Quanto abraças um projeto também ficas encarregue da decoração do interior?

PQ – Tudo, do princípio ao fim. Estou lá [na obra] desde antes da demolição – porque todos os passos são cruciais para uma boa obra. Tenho exemplos lindíssimos de pedras que ficaram porque eu estava lá na hora de demolição. É um ato de fé, também. Se fazes as coisas por bem, não há dúvida alguma que a arquitetura te vai retribuir, quase como um agradecimento. O compasso de tempo de um arquiteto é muito prolongado: é os alçados, os cortes, os desenhos, a entrega à Câmara, a correção, o falar com o cliente… quando falamos de arte, que é o que acredito que faço, é o momento que conta. Tem a ver com a entrega, tu fazeres o teu melhor e depois a vida retribuir-te com ainda melhor. E por isso é que é bom trabalhar sozinho ou com pessoas que estejam à tua frequência.

JM – O projeto deste ano do Teatro de Palha decorreu de uma forma muito diferente comparativamente ao ano passado?

PQ – A grande diferença é que, até ao ano passado, nunca antes ninguém tinha feito isto, que nós saibamos, no mundo. Um Teatro de Palha desta escala. Este ano fez-se um projeto muito mais complexo, mas muito mais fácil, porque sabíamos as limitações do material. Este ano já tratei a palha por tu e estou à vontade de que aquilo não vai cair [risos]. Percebemos que quanto mais curvilíneas forem as linhas, mais autosuportantes são. É o principio do iglu, não cai porque está tudo encaixadinho em curva.

Quando falamos de arte, que é o que acredito que faço, é o momento que conta. Tem a ver com a entrega, tu fazeres o teu melhor e depois a vida retribuir-te com ainda melhor.

JM – Este projeto continua a ser a tua maior escultura?

PQ – Em termos de escala, sim. Embora prefira quantificar as esculturas pela entrega e beleza, pelo seu sentido espiritual. Uma entrega que tanto existe a desenhar um copo como uma cidade. Há uma característica muito peculiar na minha pessoa: desde a minha primeira obra que digo que nunca faço mais nenhuma. Então dou o meu melhor e quero acabar em grande. Só que fazer o melhor possível traz-te mais clientes. Eu digo também tudo o que tenho a dizer e ao abrires-te o máximo possível, atrais as pessoas certas também. Durante a Boat House, lembro-me de que recusei 29 convites para projetos. Dizia que “agora não posso, estou a fazer amor aqui”, e só faço amor com uma pessoa de cada vez. Para mim tem sido uma fuga conseguir canalizar a minha arte sem burocracias. Eu já não consigo ser arquiteto em Portugal, porque tens de entregar desenhos feitos em computador. A arquitetura mudou de nome, já não se discute arquitetura. E a criatividade… basta olhar à tua volta, copy paste, copy paste, é tudo quadrado, retangular, porque são leis. As minhas casas são todas proibidas porque não podes ter vãos daquele tamanho, uma conexão da sala com a cozinha como eu tenho, casas de banho cuja janela é uma antiga porta de forno por onde passas um copo de vinho pela janela para beberes quando estás na banheira. Toda essa poesia que, a meu ver, é viver.

JM – É uma poesia que também torna o mundo mais belo e interessante.

PQ – É muito curioso, porque todas as pessoas sabem isso, mas ao mesmo tempo vão contra.

As minhas casas são todas proibidas porque não podes ter vãos daquele tamanho, uma conexão da sala com a cozinha como eu tenho, casas de banho cuja janela é uma antiga porta de forno por onde passas um copo de vinho pela janela para beberes quando estás na banheira. Toda essa poesia que, a meu ver, é viver.

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