CulturaSugestão de leitura

O coro dos defuntos, por António Tavares

Logo na contracapa, o texto sinótico não nos pode deixar indiferentes: “Vivem-se tempos de grandes avanços e convulsões: os estudantes manifestam-se nas ruas de Paris e, em Memphis, é assassinado um negro que tinha um sonho; transplanta-se um coração humano e o homem pisa a Lua; somam-se as baixas americanas no Vietname e a inseminação artificial dá os primeiros passos. Porém, na pequena aldeia onde decorre a ação deste romance, os habitantes, profundamente ligados à natureza, preocupam-se sobretudo com a falta de chuva; e na taberna – espécie de divã freudiano do lugar – é disso que falam, até porque os jornais que ali chegam são apenas os que embrulham as bogas do Júlio Peixeiro. E, mesmo assim, passam-se por ali coisas muito estranhas: uma velha prostituta é estrangulada, o suposto assassinado some-se dentro de um penedo, a rapariga casta que coleciona santinhos sofre uma inesperada metamorfose, e a parteira, que também é bruxa, sonha com o ditador a cair da cadeira. Quando aparece o primeiro televisor, as gentes assistem a transformações que nem sempre conseguem interpretar”.

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Capa do livro

António Tavares faz uma aproximação ao romance castiço abonando-o de uma arquitetura de onde provém o realismo mágico, de fonte latino americana. E é bem-sucedido, sabe que nos vai obrigar a ir ao glossário repescar palavras usadas pelo mestre Aquilino Ribeiro. O narrador prefere a terceira pessoa, abre todas as sequências com Diz ela, e as histórias de encantar situam-se para os lados de Mangualde, a aldeia tem regedor, uma avó tresloucada, o Manuel Rato que foi expulso do seminário e vai tentar refazer a sua vida em Fall River, a irmã parte para a Suíça, pontifica a Chichona, uma prostituta septuagenária para a qual se voltam alguns maridos desencantados. É Júlio Peixeiro quem traz a notícia de que Salazar caíra da cadeira, isto para deixa bem claro que o ponto de partida temporal é mesmo 1968, o padre Sebastião bem pôs a comunidade a rezar pelo ilustre doente, o mundo seguiu o seu curso, chegara o novo chefe de Governo enquanto a Chichona aparecia estrangulada, fora descoberta por Manuel Rato que decidiu entrar por uma pedra dentro, houve quem tentasse rebentar pedra onde ele se metera, nada resultara. Os tempos passam e um televisor chega à taberna: “Arranjou-se uma prateleira a um canto, discutiu-se com fereza a altura a que devia ficar a máquina e assim foi depositada. Uma vez ligada, foi necessário correr o teto da taberna à cata de sinal”. Lá se conseguiu estabilizar a imagem. E a partir daquele dia a aldeia não voltaria a ser a mesma: “O espaço passara a ser maior como se tivesse sido esticado. E dele vinham outros assuntos, apoquentações, outras figuras e outras gentes, imagens de cidades e, sobretudo, pessoas que falavam de uma maneira diferente. O esforço consistia em pintar com cor o que se via a preto e branco. Os homens não tinham ainda a certeza de que aquele mundo, de contornos pouco nítidos, existia de facto. O que viam tinha uma aura de irreal, e mesmo quando aparecia algo que merecia verosimilhança havia sempre quem tivesse uma unha de dúvida”. E prova provada que o mundo estava a mudar vinha na comunicação que ali chegava: “Bastava ver como se despiam nas revistas e nos jornais, os anúncios publicitários à lingerie e aos pensos higiénicos que desvendavam segredos milenares, e todos os outros, nos quais a presença da mulher já não dispensava. O mundo dos homens começava também a ser delas”. Caminhamos para o fim do regime, como a própria televisão ajudava a esclarecer: “A televisão, nos seus noticiários e nas suas imagens, deixava perceber que o caixa-de-óculos andava com ar triste. Os homens percebiam-no, entre dois carapaus fritos poisados numa fatia de broa e num copo de branco. Este gajo anda à rasca! Exclamava o Galénia de cada vez que o via aparecer. Logo outros defendiam, ligeiros que a situação estava sobre controlo”. Finalmente rebentou-se a pedra e começou a revolução. A velha feiticeira pressentiu que algo de anormal se passava. Ao amanhecer, viu soldados trajados de verde. Nesse instante riu-se e caiu-lhe um dente.

É exercício de alto risco, recorrer ao castiço de Aquilino em tempos de vertiginosa rotação. Com justeza, foi o vencedor do Prémio Leya 2015: O Coro dos Defuntos, Leya, 2015. É um coro que se lê com imensa fluidez, mesmo com as constantes visitas ao glossário.

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