Levante-se o réu outra vez: Há grandes escritores que se disfarçam de grandes jornalistas
Quando leio Rui Cardoso Martins comprovo que há grande jornalismo também devido a enormes e inusitadas potencialidades literárias. Este novo volume de crónicas “Levante-se o réu outra vez”, por Rui Cardoso Martins, Tinta-da-China, 2016, convoca duas questões: como retirar da efemeridade páginas de valor absoluto, de importância indiscutível; e como o jornalista muitas vezes nos distrai e se distrai sobre o grande prosador que na aparência fica confinado a um jornal que se esgota no mesmo dia. O escritor Lobo Antunes exara no prefácio que Rui Cardoso Martins que andou ao longo de 20 anos a assistir a largas centenas de casos de justiça uma referência a um outro grande escritor, José Cardoso Pires que sobre o dito Rui Cardoso Martins se alargava em considerações do seu ofício de jornalista em tribunais de polícia, não escondendo o seu louvor por quem escrevia para o jornal Público tinha o “pudor de estar ao lado do sofrimento, tocando-lhe sem lhe tocar, porque não é preciso mexer nas pessoas para gostar delas, nem mudar-lhes os traços e os gestos para as amarmos”.
O melhor é repescarmos do volume alguns parágrafos concludentes do retratista Rui Cardoso Martins. Da crónica “Mário e as amigas”, o seguinte: “Se há um padrão mínimo universal para a formosura, Mário não deve caber nele. O tronco inchado assenta em pernas finas. Os ombros, atirados para baixo, seguram uma bola decorada com penachos de cabelo liso. A curta distância dos olhos miúdos e menos ainda do repolho do nariz, os dentes projetam-se para a frente num ângulo acentuado. Assim, quando fecha a boca e os dois maxilares colidem, os dentes em quilha forçam do interior os lábios grossos e ficam à mostra”.
O grande teatro do mundo onde estas crónicas aconteceram tinha como palco o Tribunal de Polícia, por aqui desfilaram drogados e chulos, violadores e brutos inocentes alcoólicos e pedantes, pilha-galinhas e gente sem vocação para trabalhar. Eram crónicas e como observa o autor, não se pode mentir em jornalismo, a realidade é que tem muita imaginação. É um autor benévolo a seu respeito, isto de esculpir caracteres deu milagres como os de Camilo Castelo Branco e Fialho de Almeida, e se estamos a ser incitados a falar de jornalistas basta mencionar Baptista Bastos. Estamos aqui a prendar o retrato, o cronista observa quem se põe em frente do juiz, tem que recorrer a águas-fortes: “O senhor Pombo mastiga a meio das palavras, e também quando está calado, parece alojar na boca uma pastilha residente, elástica e imaginária. Tem um lado ruminante. Está esburacado no pescoço pelas bexigas, com placas de ladrilho danificadas. Mas os olhos são bonitos, verde-berlinde. No geral, a sua carantonha dava uma boa figura para chafariz. É também um homem altíssimo e magro, um corpo com alta percentagem de vaudeville. Tem, de facto uma rica figura ao 37 anos mas que o prejudica nas tarefas de ser ladrão”. O humor é transbordante, embora discreto, e assim se disparam farpas que chegam aos próprios advogados, que às vezes se apresentam como réus: “Há aquela anedota do dia em que o Diabo acordou mal disposto, com sentimentos inexplicavelmente daninhos, tirou logo um curso de Direito e montou um escritório de advogados. Há pessoas extraordinárias na advocacia, algumas são minhas amigas e confiava-lhes toda a minha fortuna e, embora isso não lhes mudasse a vida em nada, podendo até talvez prejudica-las, seria um gesto sincero. Mas ao advogado deste caso eu não confiava sequer a hipótese de vir um dia a confiar nele. Um advogado que é arguido no seguinte caso: atropelou uma rapariga na passadeira dos peões, deixando-a inválida durante 150 dias. Feito isto, não apresentou desculpas, nem contestação, não pareceu no julgamento e muito menos na sentença. Isto é: nem quis saber”.
Há crónicas que lemos compulsivamente, daquelas em que a realidade supera a imaginação e o grande escritor ombreia com o grande jornalista, é o caso de uma luta sem quartel entre Maria do Carmo e Maria da Piedade, num prédio da avenida Visconde de Valmor bateram-se e escavacaram partes do edifício. Um ódio tal que meteu a destruição na loja onde havia porcelanas e faianças valiosas. O autor recorda a batalha de Verdun, morreram 700 mil para nada e conta o seguinte a propósito da contenda das ditas senhoras:
“O intrigante é quando o caso chegou a tribunal, as duas desistiram da queixa. Uma vinha de preto, com a ideia que fazemos da morte. Não se olharam, os avogados trataram dos quartéis, é a vida deles. Nenhuma podia ganhar.
Em Verdun, a linha da frente não variou mais de um quilómetro em dez meses. O chão ficou tão poluído de obuses e gases que a vegetação não cresceu durante anos. Morreram cerca de 700 mil homens para nada. Ou melhor, morreram para morrerem”.
Não é só uma questão de calibrar os parágrafos nem de alinhar as frases dando-lhes uma vivacidade tal que se agarra prontamente o leitor pela gola. O que fica deste longo desfile de crónicas é que há um escritor que teve a seu cargo o mister de cronista e que deixou peças preciosas de tragicomédia e de palpitante análise social. É legítimo que quem andou 20 anos a fazer de jornalista e cronista decida fazer férias sabáticas e espalhar o amor por outros espaços. Resta dizer que a singularidade destas crónicas não voltou a ser retomada por quem quer que seja. Isto para relevar que não é para todos este registo literário onde se intersetam o chocante e o caricato e os arremedos de justiça e as provas provadas de que a mesma às vezes pratica flagrantes e irremediáveis justiças.