CulturaDestaque

Dia Mundial da Língua Portuguesa: “uma língua para entender uma cultura, sempre”

A língua portuguesa corre o mundo. Sendo o idioma oficial em 9 países e com mais de 260 milhões de falantes, trata-se nada mais, nada menos, do que “uma língua com vários ritmos”.

Neste Dia Mundial da Língua Portuguesa, que foi oficializado pela UNESCO em 2019, o JORNAL DE MONCHIQUE entrevistou a formadora de Português para Estrangeiros e também tradutora de alemão para português Ana do Carmo, para quem as línguas são uma ferramenta através da qual é possível chegar à cultura de vários países. E, desta forma, sentir-se em casa num país estrangeiro.

O português possui várias particularidades linguísticas, tais como tempos verbais únicos, mas, para esta formadora, o mais importante é ensinar a comunicar e a transmitir de forma “compreensível aquilo que se quer dizer”.

Ana do Carmo começou por tirar um Curso Superior de Tradutores e Intérpretes no ISLA, seguindo-se uma Licenciatura em Línguas e Literaturas Modernas, na Universidade Aberta de Lisboa, um Mestrado em Estudos Alemães, na Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa, e um Doutoramento em Estudos de Cultura, na Universidade Católica. Em 2017, fundou a escola de línguas KULTLINGUA, em Loulé, onde dá aulas de Português para Estrangeiros e Alemão.

Jornal de Monchique — O que a levou a seguir o caminho das línguas há quase 40 anos atrás?

Ana do Carmo — Eu sempre me senti fascinada por pessoas que falavam uma língua diferente da minha. Não sei se foi pelo facto de morar no Algarve, mas já em criança achava curioso ver as pessoas falarem outras línguas nos filmes e não perceber o que é que elas estavam a dizer. Foi sempre mais nessa perspetiva que eu me interessei por línguas. Um linguista analisa tudo ao pormenor e eu gosto mais de encarar uma língua de uma forma mais abrangente.

JM — Associa a língua ao contexto cultural?

AdC — Uma língua para entender uma cultura, sempre. Interessa-me sempre analisar a língua enquadrada num contexto cultural, histórico.

JM — Essa sua perspetiva face à língua sofreu alguma mudança à medida que começou a dar aulas?

AdC — Não, aprofundou-se até. Eu comecei na Alemanha a dar português a uns alemães de forma esporádica e depois comecei mais a sério há 23 anos. Depois fiz uma pausa durante o doutoramento. Mas foi sempre assim. Eu tinha de aprofundar a parte linguística para explicar — é necessária uma explicação, saber como funciona a língua —, mas é sempre para, através da língua, chegar à cultura. O meu lado é sempre um lado cultural. A língua aplicada à vida de uma comunidade.

JM — Isso reflete-se nas suas aulas?

AdC — Sempre. Não há aula em que eu não fale da cultura. Até porque termino com uma canção. Por exemplo, hoje descobri que a Mariza é cabeça de cartaz nos BBC Proms. Ela vai atuar no Royal Albert Hall no dia 21 de julho. E os ingleses que vão estar lá não vão entender nada da língua, portanto não é uma questão linguística: é uma questão do fado, do ritmo e uma língua associada ao ritmo.

JM — Aí entra também a parte emocional da língua?

AdC — Também, uma língua reflete tudo isso. Mas na questão do fado acho que até tem mais a ver com o ritmo. Quando ouvi a publicidade do ano passado do Dia Mundial da Língua Portuguesa [da UNESCO], eles até focaram uma frase muito gira: “uma língua com vários ritmos”. Se pensares, a língua portuguesa tem o ritmo do samba (o português do Brasil), o fado, a morna (em Cabo Verde)… e tudo com língua portuguesa por trás. Se os ritmos afetam e chegam às emoções das pessoas? Claro, isso já é a arte, a música. Mas a língua portuguesa está a ser usada como o veículo para transmitir isso. Um ritmo que chega às pessoas, e que faz parte de uma cultura.

JM — Concorda com a frase de Fernando Pessoa, que dizia que a sua pátria era a língua portuguesa?

AdC — Eu acho que até é o contrário. Eu cresci com essa frase, sempre estudei autores portugueses e às vezes debruçava-me sobre a frase e pensava o que ele queria dizer com isso. Eu costumo dizer às pessoas que devem aprender português para se sentirem em casa, portanto a pátria no sentido do sentir-se em casa, à vontade, numa zona de conforto. Em que através da língua conhece tudo à volta, a casa. Eu acho que é mais nesse sentido, não no sentido nacionalista.

O meu lado é sempre um lado cultural. A língua aplicada à vida de uma comunidade.

JM — Podemos sentir-nos em casa mesmo que numa língua estrangeira?

AdC — Se dominares o básico dessa língua e assim começares a entender um bocado a cultura, sim.

JM — É possível expressarmo-nos na totalidade numa língua não materna?

AdC — Eu acho que não. Ou então requer um grande conhecimento dessa língua. A totalidade eu punha entre aspas. O facto de se ter de explicar em várias palavras, às vezes, para chegar a uma, isso pode ser um obstáculo, sem dúvida. Portanto, a totalidade não, mas um básico, sim. Entendermos de uma forma geral o que está à nossa volta.

JM — O que distingue o português das outras línguas?

AdC — Agora vamos à parte linguística. O português tem tempos verbais, por exemplo, que nenhuma outra língua latina tem. A questão do infinitivo pessoal é típica só do português e do galego. Ou a questão do uso do imperfeito com valor incondicional. Ainda hoje tive um grupo de alemães e eu tive de lhes dizer que nós temos o condicional, mas não o usamos quando falamos. É por isso que dizemos “eu queria” e não “eu quereria”. E depois a questão do presente do conjuntivo, “para que nós façamos”, que é substituído pelo infinitivo pessoal, “para fazermos”. O que é extremamente útil, e é uma marca do português. E para explicares isto a um estrangeiro, tens de saber linguística e a gramática.

JM — Enquanto tradutora, sente-se desafiada por esta diferença entre as línguas, assim como pela questão do ritmo de que falava antes?

AdC — Também, muito. Mas estamos a entrar numa outra área, que é completamente diferente da área da comunicação e de partilhar, ensinar a língua. Pode-se dizer que o tradutor é como um segundo autor e convém entenderes muito bem a cultura das duas línguas que estás a dominar no momento: a língua de partida, que pode não ser a língua materna, e a língua de chegada, que é a que dominas melhor. No meu caso, é o português. E eu posso pôr-me num cérebro alemão, pensar o que é que o autor pensou ao escrever aquela frase, porque eu domino muito bem a língua alemã e a cultura. E isto é fundamental numa tradução: tu saberes o que é que a pessoa que escreveu aquela frase tinha em mente, e só consegues isso quando entendes muito bem a língua e a cultura.

Pode-se dizer que o tradutor é como um segundo autor e convém entenderes muito bem a cultura das duas línguas que estás a dominar no momento: a língua de partida, que pode não ser a língua materna, e a língua de chegada, que é a que dominas melhor.

JM — Uma língua está em constante evolução?

AdC — Claro, sempre. É um ser vivo. E agora até podemos dizer mais que está em simplificação, sobretudo com a questão das novas tecnologias. No caso da língua portuguesa, quando se faz legendas com um determinado número de caracteres, tens de simplificar. E até está em redução, há palavras que estão a cair em desuso. A língua quase que se repete muito mais, já não há aquela preocupação em alargar vocabulário.

JM — Sente necessidade de ir adaptando as suas aulas para acompanhar essa evolução?

AdC — Por vezes, nos grupos mais avançados, eu chamo à atenção das pessoas que já não se diz assim, e aqui volta a gramática também. Por exemplo, no “mais do que”, o “do” está a desaparecer. É “mais que”.

JM — De onde obtém essas informações?

AdC — Primeiro, porque tenho conhecimento da língua e oiço. Depois, porque trabalho com gramáticas e as gramáticas para os estrangeiros — não aquelas para os portugueses — já têm o “do” entre parênteses. É uma marca da evolução, da transformação da língua. Qualquer dia o “do” já não existe.

JM — Porque é que isso só é mencionado nos livros de português para estrangeiros?

AdC — Porque estes têm mais necessidade da comunicação oral, da conversação. Enquanto nas escolas, se calhar um professor pode chamar à atenção para isso, nas gramáticas para estrangeiros foca-se sobretudo a questão da oralidade, vai-se ao essencial para comunicar.

JM — A sua abordagem à língua é muito diferente da que é feita nas escolas?

AdC — A diferença principal é a que eu disse há pouco: nas escolas, os jovens são sobrecarregados com terminologias, que se vão alterando também, e isso, para mim, para ensinar português não é importante, de todo. Eu costumo dizer que a língua portuguesa é uma língua SVO: sujeito, verbo e objeto. E isto é básico, mas é suficiente para ensinar um estrangeiro. Nas outras línguas, como a alemã, por vezes isto não acontece, o verbo está no final. E no caso da língua portuguesa, muitas vezes nem é necessário dizer o sujeito, porque o verbo diz qual o sujeito a que me estou a referir. Mas isto basta, não preciso de ir a mais sofisticações para ensinar a um estrangeiro como é que ele deve falar a língua. Claro que há pessoas que me perguntam como é que se chama na gramática, e eu digo. Mas costumo dizer que não precisam de fixar estes nomes.

Nas escolas, os jovens são sobrecarregados com terminologias, que se vão alterando também, e isso, para mim, para ensinar português não é importante, de todo. Eu costumo dizer que a língua portuguesa é uma língua SVO: sujeito, verbo e objeto. E isto é básico, mas é suficiente para ensinar um estrangeiro.

JM — Onde é que os seus alunos sentem mais dificuldades?

AdC — Em primeiro lugar, na pronúncia, na compreensão da nossa língua. Demora tempo até eles entenderem o que um português diz, mesmo já tendo umas bases e tendo acesso a uma small talk.

JM — Isso deve-se àquela ideia de que engolimos letras ao falar?

AdC — Sim, mas eu costumo dizer às pessoas que isso não é verdade. Nós temos 5 vogais e 14 sons diferentes, então o que acontece é que no final de uma palavra tu tens o “a” ou o “e” que parece que estamos a engolir. O som é que é mais fraco, não engolimos.

JM — Mas há aqueles casos em que sobrevoamos letras ao juntar palavras.

AdC — Sobretudo quando termina com “s”, nós ligamos. Mas eu acho que não engolimos nada, unimos. E o português é muito monocórdico, no caso do português do Brasil é mais melodioso.

JM — Quais são os indicadores que permitem avaliar se alguém fala e escreve realmente bem português?

AdC — Isso é uma pergunta interessante. Não é uma pessoa que precisa de dizer os verbos tudo corretamente, não. Mas é uma pessoa que compreende o que lhe dizem e que pode transmitir de forma relativamente compreensível aquilo que quer dizer. Tem de haver uma certa base da gramática, e é por isso que a língua portuguesa requer estudo, muita audição. Eu digo sempre às pessoas para ouvirem rádio, mesmo que não compreendam nada, para se habituarem aos sons. Não é possível conversar se não houver uma base para falar; falta o vocabulário, a estrutura da língua e a pronúncia, que é fundamental.

Eu digo sempre às pessoas para ouvirem rádio, mesmo que não compreendam nada, para se habituarem aos sons. Não é possível conversar se não houver uma base para falar; falta o vocabulário, a estrutura da língua e a pronúncia, que é fundamental.

JM — Qual é a melhor estratégia para melhorar o português, não só para estrangeiros como também para os próprios portugueses?

AdC — Ouvir, ler em voz alta, gravar e ouvir a própria voz. Mas sobretudo ouvir, por isso uso muito a parte cultural com as músicas. Ponho a Mariza e outros com canções com letras para eles seguirem a melodia e depois ler a letra e tentar cantar ao mesmo tempo. Como qualquer língua, depois é preciso praticar. Há muitas apps, mas é sempre necessário um ser humano que oiça e vá corrigindo, porque depois quando as pessoas aprendem um som incorreto, esse som fica-lhes durante muito tempo. Eu não aspiro a perfecionismos com as pessoas; não precisam de falar bem português, só precisam de que um cérebro português entenda o que estão a dizer, que se estabeleça a conversação. E aí têm que prestar muita atenção à pronúncia.

JM — Considerando a literatura como exemplo, no caso dos autores que criam um estilo próprio e saem fora das regras que ditam a língua, é correto dizer-se que escrevem bom português?

AdC — Isso é relativo. Eu tenho que me repetir aqui outra vez, o bom português é só aquele português que permite um diálogo, que se estabeleça comunicações entre um emissor e um recetor. Falar bem é falar de forma que a outra pessoa me entenda. Às vezes esse tipo de estratégias fora do normal, como no caso de não haver uma pontuação, requer um esforço mental. Um estrangeiro então tem muitas dificuldades, é preciso uma pessoa dominar completamente a língua e muitas vezes tem de ler em voz alta para fazer a pontuação. Eu não acho que seja necessário alterar o que é comum para se usufruir de uma boa leitura. Eu presto muito mais atenção ao conteúdo, ao “miolo”, do que propriamente à forma. Para mim, a literatura pode ser muito o ensinamento, mas é sobretudo entretenimento, uma atividade lúdica. Mas isso vai muito com a opinião de cada um.

Partilhar