Os perpetradores que alegam só ter cumprido ordens: os da PIDE
A contracapa deste (mais um) relevante trabalho de investigação de Irene Flunser Pimentel (“Os Cinco Pilares da PIDE”, A Esfera dos Livros, 2019) é bem elucidativa do miolo da obra: “A PIDE/DGS foi responsável pela repressão de todas as formas de oposição ao Estado Novo. Vigiou, prendeu, torturou, censurou e será para sempre recordada como sinónimo de violência e brutalidade. Espalhava o medo para instilar a passividade entre os portugueses e atuava sobre aqueles que ousavam falar, criticar e agir contra o regime ditatorial.
A historiadora apresenta-nos um retrato rigoroso de cinco figuras que marcaram esta polícia política pelas suas atividades, atitudes e tomadas de decisão, procura responder a uma questão central: Quem eram os pilares que sustentavam esta estrutura e que colocavam a máquina a andar?
Barbieri Cardoso, o vice-diretor da PIDE/DGS, por muitos considerado o verdadeiro diretor desta polícia; Álvaro Pereira de Carvalho, o importante diretor dos Serviços de Informação; José Barreto Sacchetti, que chefiou os Serviços de Investigação, recordado pelos seus métodos violentos e pela sua responsabilidade nos interrogatórios; Casimiro Monteiro, o agente com uma história de vida rocambolesca, marcada pela violência e que foi condenado como o assassino do general Humberto Delgado e da sua secretária Arajaryr Campos e, finalmente, António Rosa Casaco, o tarimbeiro que ascendeu desde o fundo da hierarquia até chegar a inspetor e que fez um pouco de tudo, desde raptos em Espanha a tortura nos interrogatórios, em alternância com a subchefia da interceção postal e da escuta telefónica.
Perceber quem eram, a sua ascendência, as suas convicções, a forma como entraram para a polícia política, como subiram na carreira, como reagiram perante determinadas situações, bem como viveram o pós-25 de Abril, é também perceber a história da PIDE/DGS, pois uma instituição é sobretudo o que os seus responsáveis fazem dela”.
A historiadora começa por nos dar o currículo destes perpetradores, a análise do seu comportamento é determinante para compreender o funcionamento do terror, da intimidação, da opressão que um regime ditatorial provoca, é a sua guarda pretoriana que gera o medo entre as populações. Cita investigações internacionais sobre o ânimo destes perpetradores, como, perante os tribunais, se justificaram pela violência que praticaram. Como não se nasce torcionário, importa indagar como um ser humano se transforma em torturador, e daí a investigadora ter observado as gerações de pertença destes cinco homens, como foram progredindo ao longo do Estado Novo, como corresponderam às preocupações do regime em neutralizar as oposições e, fundamentalmente, dar guerra sem quartel aos comunistas. Uma evolução do regime que implicou alterações organizacionais da polícia, que estabeleceu relações com outras polícias e serviços secretos, gerando mesmo a formação de blocos de simpatias, nomeadamente no decurso da II Guerra Mundial. E analisam-se métodos, o recurso aos informadores, às escutas, à interceção postal, à tortura, que ia desde o espancamento físico à “estátua”.
E ganha relevo na investigação o processo do assassinato de Humberto Delgado, como se montou a operação, quais os intervenientes, quem lançou o isco e quem colaborou na armadilha. Desencadeada a luta de libertação colonial, proliferaram as formas de oposição, esta passou a recorrer à ação armada, a PIDE/DGS cresce em todo o universo colonial. As oposições organizam-se, assiste-se à radicalização estudantil e laboral, vamos igualmente sabendo das traquibérnias destes pilares da PIDE, do seu relacionamento com os Serviços Secretos europeus, é-nos oferecido o quadro de transição da PIDE/DGS do salazarismo ao marcelismo, enfim, chega-se ao 25 de Abril e dá-se a detenção de muitas das figuras da corporação, houve quem teve meios para fugir, alguns deles irão mais tarde aparecer na movimentação do Verão Quente. É uma sequência cronológica onde pesam o 11 de Março, o julgamento do caso Delgado, processo esse que é importante estudar para se ver as justificações dadas por perpetradores da violência e da opressão.
Atenda-se ao importante epílogo do estudo: o olhar público de uma sociedade libertada pós-25 de Abril que respirou de alívio quando estes torturadores despareceram de cena e parecia que iam ser castigados. Escreve a autora: “Em geral foram considerados como os epígonos da Ditadura, enquanto os seus mandantes fugiam ou exilavam-se e só mais tarde foram presos. Qualquer cumplicidade de portugueses em geral foi evacuada, em nome de um ‘povo-vítima’ que teria sofrido em geral a repressão da polícia política, o que não correspondia à verdade, pois os alvos da mesma eram os que se erguiam contra o regime de Salazar e Caetano, a ditadura e a guerra colonial. Da mesma forma, salvo exceções, foi quase esquecido o facto de ter havido não só milhares de informadores, como ainda maior número de candidatos a essa atividade de traição”. Alerta a autora que se pode e deve fazer uma história de carrascos não para julgar mas para interpretar a realidade passada. O que se veio a verificar é que os perpetradores escudaram-se em expedientes do cumprimento das ordens, do mero serviço técnico. Também fica claro no estudo que a PIDE/DGS não foi um Estado dentro do Estado, o que houve foi uma ditadura centrada no chefe, a toda a hora informado do que fazia a sua polícia política. A obediência a Salazar foi irrestrita. Estes carrascos e torturadores acreditavam piamente na ideologia do chefe, eram sicários obedientes, uns com mais cultura e cosmopolitismo que outros, havia mesmo quem se aperaltasse e perfumasse e, por desfastio, passava pela António Maria Cardoso para assistir aos interrogatórios. Não eram temíveis psicopatas, mas uns roubavam, outros tinham tido vidas marginais e, no seu todo, contribuíram para o afundamento do regime em não ter percebido muito bem o que eram as informações na guerra colonial. Um antigo diretor da PIDE/DGS em Bissau, Fragoso-Allas, deixou claro numa entrevista em livro que tudo quanto enviava para Lisboa pura e simplesmente não tinha encaminhamento, eram questões inconvenientes.
Talvez a obra mais importante de Irene Flunser Pimentel depois de “A História da PIDE”. De leitura obrigatória.