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Os javalis estão a esgotar a paciência e os bolsos dos agricultores

Reportagem publicada na edição 478, de 29 de setembro de 2023

“Vêm mais perto e há mais”. É esta a opinião geral dos pequenos agricultores, que tentam proteger os seus canteiros dos javalis com as mais criativas estratégias. Sendo uma superpopulação que enfrenta uma escassez de alimento, os javalis têm-se aproximado mais dos humanos. A solução para reestabelecer o equilíbrio no ecossistema parece ser uma caça intensiva, mas o número de caçadores tem vindo a diminuir de ano para ano e, além disso, muitos também dão comida junto aos aglomerados populacionais.

Se os terrenos estão revoltos devido aos javalis, em nada esta revolta se compara à que as pessoas sentem quando se deparam, de manhã, com as suas batatas viradas do avesso e os valados completamente destruídos. Na serra de Monchique, como no resto de Portugal e Europa, os javalis têm sido cada vez mais motivo de arrelia para os pequenos agricultores, que se veem desesperados ao ponto de darem asas à imaginação e resolverem deixar o rádio ligado durante a noite, a ver se afugenta esta “praga”. Outros tentam montar sensores de luz e vedações elétricas, fazem xixi à volta do terreno ou espalham um pó que cheira a lobo. Alguns têm sorte, como Vitorino Inácio que, desde que espalhou pelo seu terreno no Corte Pereiro um produto para galinhas, deixou de ter javalis a esburacarem os canteiros de batatas. Maria (nome fictício), por sua vez, chegou à conclusão de que estes animais, que parecem ter vindo a perder a “vergonha na cara”, não são grandes apreciadores de perfume.

Mas, no final do dia, quando se vão deitar, o sentimento que fica nos agricultores é mais de impotência perante este “bicho maligno”, como amaldiçoa Deolinda Duarte, que desata a desabafar, exaltada, sobre o tema assim que é questionada pelo JORNAL DE MONCHIQUE durante uma visita à sua casa, na Picota. “Mas o que é que a gente faz? Se pusermos uma rede, eles ‘afossam’ e metem-se por baixo. Quem é que dá conta daquilo? Só matá-los com uma espingarda. Tem lá alguma solução!”, lamenta a moradora.

Se há anos só se avistava um ou dois javalis de vez em quando, agora são “rebanhos” que “até nas vacas mordem nas pernas” e que “dão cabo de tudo”, observa Deolinda Duarte, concluindo que “agora está pior, vêm mais perto e há mais”. Há pouco tempo encontrou uma porca com nove bacorinhos à porta de casa ainda nem tinha anoitecido.

Para a moradora, isto está a refletir-se, sobretudo, em “prejuízos incalculáveis” nos valados, que, ainda por cima, são “coisas bem feitas de antigamente” e que hoje “já ninguém faz”. Nem para mencionar o dinheiro que custaria a reconstrução, que “não são 50 euros ou 500, mas sim milhares”. A sua horta também não tem escapado às consequências. Agora nesta última colheita, os tomates, os pepinos, os pimentos e as cebolas que tinha plantados num canteiro, que até estava vedado, ficaram todos devastados. Contudo, uma vez que já não semeiam tanto como antes, os prejuízos na sua sementeira têm sido menores quando comparados ao dos valados. Mas como é que sobrevivem “as poucas pessoas que ainda semeiam?”, questiona-se Deolinda. “É que é toda a gente a clamar com os porcos.”

Se há anos só se avistava um ou dois javalis de vez em quando, agora são “rebanhos” que “até nas vacas mordem nas pernas” e que “dão cabo de tudo”, observa Deolinda Duarte, concluindo que “agora está pior, vêm mais perto e há mais”.

Mais acima na Picota, Anne Dinneen confessa que sentiu vontade de chorar quando os javalis arrombaram o seu canteiro de flores pela segunda vez consecutiva. Também estão a atacar as suas árvores de fruta, cujas raízes ainda são muito delicadas por já ser a terceira vez que estão a ser plantadas na sequência dos incêndios de 2003 e de 2018. Mas não é preciso avançar muito na propriedade de Anne para ver os estragos causados pelos javalis: logo à entrada vê-se um agave caído no chão, vítima de uma queda de uns bons metros depois de ter sido desenterrado e empurrado pelos atacantes.

Até agora, os fios azuis e vermelhos que a moradora resolveu colocar há cerca de quatro meses – visto que já não aguentava os estragos “que estão cem vezes pior este ano” – têm estado a resultar. Mas parece ser só “sorte”, porque sabe de um vizinho que montou uma vedação elétrica com quatro fios e que vai acrescentar agora um quinto por não estar a ter sucesso. Se calhar é Django, o seu cão, que está a fazer um bom trabalho a afugentar os javalis durante a noite. “Antigamente nunca o deixava ir lá fora, porque detesto o som dos cães a ladrar à noite”, afirma Anne. As circunstâncias, contudo, obrigaram-na a começar a deixar a porta da sala aberta. Também passou a ter um novo hábito antes de se ir deitar, que é certificar-se de que a vedação está mesmo fechada.

Não há predadores naturais, nem alimento

Sempre existiram javalis em Portugal, só que, antigamente, o ecossistema era muito mais rico do que é agora. “O que acontece é que o ser humano matou a maior parte dos grandes predadores”, deixando de existir um controlo natural da população desta espécie de nome científico sus scrofa, explica ao JORNAL DE MONCHIQUE a bióloga e professora na Escola Secundária de Odemira, Paula Canha.

Ao problema da superpopulação acresce a escassez de alimento verificada devido a fenómenos como a seca, levando a que os javalis se tornassem mais “afoitos” e se aproximassem mais dos humanos à procura de comida. Para mais, acrescenta a bióloga, as próprias características intrínsecas à espécie ajudam a explicar os estragos causados nos terrenos: tem uma boa capacidade reprodutora e “não teme os humanos”.

Rui Nobre, presidente da Associação de Caça e Pesca “Os Monchiqueiros”, complementa que a seca também tem atraído mais os javalis para a serra, porque precisam de muita água. Para este caçador, a espécie já pode ser considerada uma “praga” por estar “completamente descontrolada”. No entanto, nota que não consegue dizer ao certo se há mais javalis este ano, porque se trata de uma espécie migradora que se desloca longas distâncias à noite à procura de alimento, dificultando a sua contabilização.

Para este descontrolo populacional tem contribuído o facto de estarem a acontecer cruzamentos entre javalis selvagens e porcos domésticos, o que pode elevar o número das suas crias para seis ou sete, quase o dobro das do javali puro, sublinha Rui Nobre. E, se é verdade que a seca reduz o alimento, o caçador acrescenta que os incêndios e a falta de campos de milho e trigo também estão na origem do problema. Isto porque, havendo menos comida à disposição da caça dita “menor”, como perdizes, pombos e coelhos, os caçadores são obrigados a espalhar sementes nos terrenos para garantir a sua sobrevivência e, como é óbvio, os javalis também aproveitam a oportunidade. Os javalis alimentam-se, preferencialmente, de grãos de trigo, milho ou de insetos, pelo que só vão remexer nas hortas em último caso. “O nosso objetivo é tratar das outras espécies, porque ninguém pratica agricultura praticamente nenhuma, ninguém semeia nem trigo, nem milho, na serra. Somos nós que temos de fazer esse tipo de trabalho para que ainda exista algumas espécies”, sublinha Rui Nobre.

O problema, contudo, é que “o próprio ser humano, caçadores principalmente, mas também pessoas proprietárias, dão comida aos javalis junto ao aglomerado populacional por forma que eles consigam abater os animais descansados, se possível em casa”.

E “os incêndios destruíram os sobreiros e carvoeiros”, continua, acrescentando que o que existe no concelho, ainda por cima, “é uma percentagem enorme de eucaliptais, que não dão semente para a caça”. Como “está tudo interligado, se não se investir em sementeiras, não há caça menor e também não há espécies predadoras, como águias, falcões e raposas”, observa.

O presidente do Clube de Caçadores de Marmelete, Luís Pacheco, concorda com este método, referindo que, por norma, as associações têm o cuidado de o fazer dentro das matas de eucaliptos, medronhos ou sobreiros. O problema, contudo, é que “o próprio ser humano, caçadores principalmente, mas também pessoas proprietárias, dão comida aos javalis junto ao aglomerado populacional por forma que eles consigam abater os animais descansados, se possível em casa”. Na sua opinião, esta é “a forma errada” de lidar com a sobrepopulação, porque os javalis que não forem abatidos voltarão a esse sítio de certeza, agravando os ataques às hortas e valados.

Só em Marmelete já viu “oito ou nove sítios com milho e trigo” junto das casas. “Isto acontece muito, infelizmente. A mim entristece-me”, sublinha. É por isso que é preciso ter em conta que “há os caçadores que são corretos, que fazem o trabalho de preparação todo no terreno, e há os que fazem só o furtivismo e trabalham ilegalmente, vendendo os javalis e as peles também”, aponta Luís Pacheco. Depois existem ainda aqueles que levam os animais ao sofrimento com armadilhas ilegais. Os javalis também são “um ser vivo”, diz o caçador, explicando que só com um tiro de precisão é possível abatê-los com o menor sofrimento possível.

É preciso mais caça e uma fiscalização mais exigente

Para a bióloga Paula Canha, a solução mais viável passa por substituir a predação natural dos javalis por uma caça vigorosa. Até porque, realça, estes animais não prejudicam apenas os humanos, mas também a própria natureza, destruindo, no caso de Monchique (que pertence à Rede Natura 2000), espécies protegidas e raras.

“O controlo já está a ser feito, e o Instituto da Conservação da Natureza e Florestas (ICNF) penso que tem facilitado tudo o que possa em termos de autorizações para abatidas e caças, mas mesmo assim não está a ser suficiente”, refere. Outra solução seria introduzir o lobo no ecossistema, mas a bióloga diz que seria preciso um estudo ecológico aprofundado tendo em conta que os ecossistemas geram, por vezes, “respostas imprevisíveis” e que o lobo teria a desvantagem de atacar também animais domésticos.

É verdade que o ICNF tem já declarado períodos de correção da densidade de javalis, permitindo caçar todos os dias em vez de apenas no período de lua cheia, que engloba os oito dias que antecedem a lua cheia, esse próprio dia e o seguinte. Todavia, o que se verifica é que não há caçadores suficientes (com boa ética, ressalve-se) para dar conta do assunto. “Ainda vão resistindo alguns caçadores, mas são cada vez menos. Tem-se vindo a registar, ano após ano, um decréscimo no número. Nos últimos dez anos, caiu drasticamente para menos de metade”, afirma Rui Nobre. A burocracia morosa, a dificuldade em obter uma licença de compra de armas e a falta de apoios são algumas das razões que têm afastado caras novas e jovens da atividade, aponta o caçador.

Para combater os furtivismos, Luís Pacheco sugere ainda que deveria haver uma fiscalização mais exigente, sobretudo da parte das autoridades. Urge um trabalho “em sintonia com os clubes, alertar os caçadores, ajudar os proprietários, no sentido de se chegar a bom porto para fazermos a correção da densidade e, ao mesmo tempo, criar condições para eles não virem destruir as hortícolas e os paredões junto das casas”.

Enquanto se discutem soluções para o problema, os pequenos agricultores vão tentando manter viva a esperança. Mas é difícil, porque, como nota Maria, se decidirem investir numa vedação, ainda vem um fogo e “arde tudo na mesma”. Ou seja, “gastamos dinheiro e desaparece tudo”.

Deolinda Duarte também já se resignou ao deus-dará. “A gente vai reclamar… e um empurra para outro e o outro empurra para o outro, e andam nisto. Não fazem nada noutras coisas, haviam de fazer nos porcos. “A gente quer um médico de família, não temos nenhum. Nos porcos é igual”, lamenta. O que fica para os agricultores são “os prejuízos”. E o inverno ainda nem começou: “agora quando chover e a terra ficar mole… ai, mãe do céu.”

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