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Há uma fonte na Malhada Quente que refresca, cura e promove o convívio

Reportagem publicada na edição 476, de 28 de julho de 2023

Maria Andreza Guerreiro recorda-se como o seu pai aquecia, todas as madrugadas, a água nuns “bidões muito grandes no fogo” e depois a despejava para as pessoas tomarem um banho naquelas águas termais conhecidas pelas suas propriedades curativas. Também se lembra de a sua mãe ficar zangada com o marido por tocar flauta até às tantas da noite durante os bailes que lá se faziam. Depois de ter estado cerca de dez anos ao abandono, a Fonte Santa da Malhada Quente, em Monchique, foi restaurada e tem vindo a recuperar, desde 2022, a tradição dos “banhos abertos à comunidade”, o chamado Banho do 29, evocando as boas memórias de quem conhecia o sítio antigamente e atraindo também novas caras.

“Há vários momentos do Banho do 29”, refere Carlos Mendes, arquiteto sediado em Coimbra e, desde 2016, o novo proprietário da Fonte Santa. Inicialmente, fazia-se a 29 de setembro (dizia-se que um só banho dado nesta noite antes do nascer do sol equivalia a 29) e depois passou-se para 29 de junho, pelo facto de os dias serem mais longos e de já ter terminado o ano letivo. Mas começou-se a abrir os banhos também no feriado de São João e aos domingos: no fundo, “o banho do 29 faz-se quando quiser”, conclui Carlos. Para acontecer basta organizar-se um convívio à roda de petiscos, bebida, natureza e água – não uma água qualquer, mas uma água termal hipossalina com um PH à volta de 9, própria para beber e com fama, desde 1787, de ter nascentes “milagrosas” indicadas para reumatismos, doenças de pele e problemas do aparelho digestivo.

É esta abertura à comunidade que Carlos tem tentado recuperar desde 2022, quando reabriu pela primeira vez esta fonte que é uma das três termas da serra de Monchique. Comprou a propriedade em 2016 e foi no dia 10 de agosto de 2018, quando se deparou com tudo “negro e queimado” devido ao grande incêndio, que decidiu que iria levar o projeto mesmo em frente. Era preciso dar vida a esta nascente de onde “beber é como receber um ensinamento”, como considera o proprietário.

Edifício da Fonte Santa

Se há cerca de 50 anos os banhos aconteciam em “duas banheiras” com água aquecida no exterior em bidões de latão de 100 litros, hoje a fonte santa é um espaço renovado segundo os princípios da arquitetura vernacular que inclui dois edifícios, cada um com uma bica – o Edifício balneário Termal Romano, onde ainda se vê os vestígios da parede centenária que separava o lado do tanque reservado às mulheres do dos homens, e o Edifício Banho 29, que é o mais recente. Neste último, Carlos encontrou uma segunda nascente durante as obras e substituiu as duas banheiras originais por um tanque, semelhante ao do outro edifício, e um chuveiro para os mais velhos. As pedras foram destapadas em ambos os edifícios para que se conseguisse ver a água brotar. “Você está a tomar banho e sabe de onde vem a água. É único no mundo. Você aqui não tem nada tratado, é tudo natural”, diz Carlos.

Além disso, os banhos também se distinguem pela forma como são preparados. “Se for às Caldas ou à piscina municipal, ninguém vai vazar a piscina ao entrar. Aqui tomamos banho, deitamos a água fora, higienizamos o espaço e voltamos a encher”, explica. A água nasce a 28 graus, mas à medida que vai enchendo o tanque de cimento (o que demora 2 horas, sensivelmente, por não ter o auxílio de qualquer bomba), vai perdendo temperatura, ficando com cerca de 25 graus. Aquecida pode chegar aos 35 graus, caso contrário são banhos muito refrescantes, pelo que bastam 15 minutos dentro de água. Se o objetivo for curar alguma doença, os banhos devem ser feitos com maior frequência para se aproveitar as propriedades curativas. E é sobretudo a pensar nestes casos que Carlos está a colocar a sua propriedade privada à disposição da comunidade: “Eu venho cá para essas pessoas”.

“Não há exploração económica”

A fonte santa só abre as suas “termas do povo e para todos” a convite, que são feitos pelo Facebook. As pessoas mostram interesse por mensagem privada e depois é acordada uma hora para tomarem um banho. “Ninguém paga nada”, refere Carlos, acrescentando que ainda costuma oferecer às pessoas um copo de espumante para desfrutarem enquanto se banham.

Nestes dias abertos à comunidade, os convívios também envolvem muitos petiscos e partilhas, de forma semelhante ao que acontecia antigamente – só que agora num sítio “mais bonito e remodelado”, como diz António José, irmão de Maria Andreza Guerreiro, que nasceram e cresceram mesmo ao pé da fonte, durante um destes dias de convívio mais recentes. É uma tarde de domingo soalheira e pela fonte santa ouvem-se, além dos pios dos pássaros, muitas vozes. Algumas pessoas aguardam pela sua vez, outras já estão de cabelo molhado, como é o caso de Dilma Morais, que é da Parede e ouviu falar do sítio através de um amigo. “Foi a primeira vez, adorei!”, diz, explicando que veio “de propósito passear” a Monchique. Além de se sentir “renascida” por causa da água “fresquinha”, Dilma mostra-se “tocada com a “generosidade” do proprietário da fonte.

António José, Sr. Domingos e Maria Andreza Guerreiro (da esquerda para a direita)

Outros vieram à fonte só para conviver, como é o caso dos irmãos António e Maria que têm aparecido sempre que podem desde que os banhos do 29 foram retomados. “Tenho amizade a isto”, refere António José. “A gente já fez aqui muitos piqueniques”. Por exemplo com “caracóis e carne assada”, acrescenta Jorge Ribeiro, que já não via o espaço há 20 anos. Nessa altura ainda o local estava a cargo do Sr. Domingos, da esposa e do filho. Quem tratava mais dos banhos era a sua mulher, segundo o Sr. Domingos, que ainda vive com o filho na mesma casa junto da fonte. Como aqueciam os bidões de água numa fornalha no exterior, houve um dia em que apareceram os bombeiros e puseram fim à festa. “Os bombeiros disseram que não se podia fazer aqui fogo e eu pensei, olha, vou acabar com isto, ainda me multam. Esteve mais de dez anos fechado até que este senhor comprou”, conta o Sr. Domingos.

Nos tempos em que a fonte esteve funcional, “muitas vezes não se conseguia apanhar lugar cá em baixo, tínhamos de ficar lá em cima. Estava tão cheio, vinham pessoas de todo o lado” à procura das propriedades curativas da água, recorda-se Jorge Ribeiro. E muitos saíam de lá, de facto, curados, como é o caso de uma rapariga da Ribeira Grande que passou a conseguir andar, exemplifica Maria Andreza Guerreiro. Há vários relatos deste género, que estão a ser reunidos num livro acerca da Fonte Santa. Daí que dê “pena aquilo não ser feito para as pessoas virem tomar banho”, diz Maria, referindo-se ao edifício deixado em ruína pelo incêndio de 2018 que antes chegava a albergar mais de 40 pessoas ao mesmo tempo. “Vale a pena, muita gente se curou aqui”, reitera.

“Uma coisa de cada vez”

Um dos planos previstos para o local é precisamente restaurar este edifício e torná-lo numa casa-museu, com toda a história documentada (provavelmente num formato digital) e onde as pessoas também poderão pernoitar. No entanto, isto só acontecerá quando houver uma revisão do Plano Diretor Municipal (PDM), ressalva Carlos, criticando que o PDM vigente é um “handicap ao desenvolvimento local”. De acordo com a autarquia, a revisão já está atualmente em curso.
No caso da sua propriedade, Carlos explica que está “classificada em termos de nascentes de águas minerais naturais, mas não existe um polígono que defina o sítio” onde possam, “efetivamente, desenvolver um projeto termal”.

A lista com os projetos futuros não se fica por aqui. Ainda em janeiro passado, o proprietário submeteu uma candidatura ao Prémio Gulbenkian Património e prevê, entre outras intervenções, levar a cabo um processo de qualificação da água junto da Direção-Geral de Energia e Geologia e dinamizar mais atividades no espaço, como massagens, sessões de yoga e exposições. Tal como já tem acontecido no evento do Banho do 29, que se celebra a 29 de junho e este ano se estendeu ao longo de quatro dias.

Carlos Mendes a homenagear Jorge Messias

Visando valorizar os saberes locais, o evento contou com uma exposição de cortiça da autoria de Filipe Duarte e workshops de pintura de azulejo e cura detox com água alcalina. Também foi lançada uma edição de 100 garrafas de água exclusivas, numeradas e com uma mensagem personalizada com o objetivo de homenagear pessoas e entidades locais que estejam, de alguma forma, associados ao local. Um dos mais recentes homenageados foi Jorge Messias que, por ter sido o autor da bica exterior da nascente do balneário banho 29, contribuiu para a “recuperação e conservação do local”.

Para Carlos, deve ser feita “uma coisa de cada vez”. O mais importante é manter a fonte e as suas águas “curativas” à disposição da comunidade por ser um lugar especial que respira história e traz tranquilidade. Um espaço dado pela Mãe Natureza que nos “preenche”.

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