Vitória do riso sobre o estupidez (I)
“Tal como o Céu e a Terra são dois carris que avançam paralelos pelo tempo até que uma ocorrência no infinito permite a sua interseção, a ideia da existência de deuses e da eternidade encontrará, mais dia menos dia, a sua última estação nos intermináveis compêndios da arte ou da ciência. Está por um fio a teoria de que é preciso um condutor, um comandante, uma entidade estranha, uma luz divina que desempenhe o papel que o Homem chama a si mesmo à nascença sem saber. O mesmo acontece quando chamamos o empregado de mesa: ainda antes de estar definido na nossa cabeça aquilo que queremos tomar, já sabemos que, no fim, a decisão é sempre nossa, mesmo que tenhamos a sorte de as circunstâncias da vida nos serem servidas numa bandeja ou o azar de ver a retaliação de uma vingança vir empratada numa travessa fria.
Os deuses não existem e nós não somos o seu esboço imperfeito. Não. Não é por acaso que desenhamos quatros com as pernas. Não, não é. Mas também não é para provar a nossa robustez, a nossa sobriedade, para testar a nossa resistência ao álcool. Não. Fazemos quatros com as pernas para demonstrar que não somos apenas uma conta posta de pé, para nos capacitarmos a nós e aos outros de que continuamos a erguer o destino na vertical quando o chão baila ao ritmo de uma orquestra de desgraças. Os deuses não existem. Mantenho-me firme. Faço-o por ela. É isto.
Ponto final.
A paciência é tudo.
Fim do diário.”
Depois de anos seguidos a cumprir com escrúpulos de oração uma rotina operária igual à de quem trabalha vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana, todos os dias do mês, trezentos e sessenta e cinco dias por ano, sem parar, foi isto que escrevi no meu caderno no dia em que perdi a Lieva. Julguei que era a última lavra que fazia, antes de adormecer profundamente. Pensei assim durante tempo e tempo e tempo. Até hoje, até esta tarde, até esta hora em que é forçoso contradizer-me.
A Lieva foi-me ofertada pela minha mãe uns tempos depois de regressar do deserto, se é que se pode atribuir o meu nome, uma existência, uma identidade digna a este pedaço de pedra que voltou comigo desses dias de miragem. Na verdade, foi o deserto que nunca mais se foi embora de mim, porque ainda ciranda em torno da minha pele o calor daquela terra árida encravada no médio oriente. Tudo o que vejo, agora, tem a definição de uma miragem. Lá, o bafo extenso do deserto Sírio vinha-me de fora e suava. Aqui, é uma escuridão gélida que me vem dos esconsos de dentro.
Mas transpiro na mesma. Aquele país longínquo onde as sílabas queimam como batatas quentes na boca virou-me do avesso. De todas as missões em que participei, esta que é esquecer é a mais difícil de pelejar. É como sentir uma comichão permanente naquele ponto das costas que as unhas não podem atingir.
– Tem pedigree – anunciou a minha mãe, entre gemidos desafinados de porta ferrugenta.
A cadelinha não se calava.
– É uma rafeira! Parece o Argos, o cão do Ulisses, mas em versão fêmea – rosnei.
Não se calava.
– Vês! Dá-se o caso de ser leal – atalhou a minha mãe.
Não se calava.
-Tem pulgas – disse eu com voz grossa e borbulhante como lama, a ranger os dentes, num tom igual ao que utilizava metido no camuflado de kevlar, quando me encontrava em combate.
– É isso que a distingue de uma mesa, que também se ergue em quatro patas e tem o lombo cheio de pó, só que está morta. Olha bem para a cadela, olha, repara, vê: tem vida.
A insistência generosa da minha mãe fê-la ouvir um sim. Embora não acreditasse no que acabava de consentir, o proprietário daquele sim era eu. Sim, acabei por aceitar. A minha mãe exultou. Eu exasperei. Olhei para cima e encolhi os ombros como se sopesasse o céu.
– Hossana nas alturas – disse ela, a soluçar como uma torneira avariada.
A cadela gemeu. Não se calava.
– Por amor de Alá – respondi num desabafo monocórdico, preso ao silêncio.
As mães são assim, um denominador da escala humana que encolhe o tamanho a um filho. A paciência é tudo. Aceitei