Visão invisível, por Jean Cocteau
Uma das poucas semelhanças entre os gigantes literários e as categorias de escritores que vão pela escala abaixo é a (quase sempre) triste sorte que está reservada aos chamados escritos esparsos, uma categoria muito diversificada onde cabem prefácios, posfácios, comunicações espúrias, artigos de jornais, teor de entrevistas, e algo mais. Desta desvalorização perante os auditórios se podem queixar um José Saramago, um Oscar Wilde ou um Jean Cocteau. Deste, a Sistema Solar publicou em Março com tradução e apresentação de Aníbal Fernandes um conjunto de textos de rara beleza que só servem para alevantar a categoria de um génio que se dispersou pelo teatro, pelas artes plásticas, não se eximiu à atração musical e à poesia sublime: Visão invisível.
Para quem ainda não se iniciou na literatura deste nome supremo, Aníbal Fernandes, reserva uma surpresa graças ao desvelo da apresentação. Diz Cocteau: “Nunca tive um rosto bonito. A mocidade fazia-me o papel de beleza. A minha estrutura óssea é boa. Por cima dela, as carnes organizam-se mal. Além disso, o esqueleto altera-se com o tempo e estraga-se (…) Para resumir, num corpo nem grande nem pequeno, franzino e magro, armado com pés e mãos admiradas porque longas e muito expressivas, passei uma cara ingrata. Dá-me um ar de falsa sobranceria”. Estudante rebelde, educado numa família apaixonada por música e pintura. Viveu a guerra com elegância (a sua farda tinha sido feita por um grande costureiro de Paris). Na casa dos 20 anos já frequenta meios artísticos de primeira grandeza, dá-se com Diaghilev, o nome lendário dos Ballets Russos, Erik Satie, André Gide, Darius Milhaud. Torna-se dependente do ópio, desintoxica-se com dificuldade. Em 1929 surge aquele que é considerado o seu melhor romance, Les Enfants Terribles. Leva uma vida de fugas consecutivas. Está em permanente atividade até ao fim da vida, escrevendo páginas de diário, poemas, fazendo pintura, filmando. Como escreve Aníbal Fernandes: “Cocteau viveu ao contrário da invisibilidade. Foi tão fotografado com Dalí ou Picasso, teve o seu rosto tão conhecido com o dos atores. Nas convivências mundanas encantava; encenava um jogo de mãos para cercar tudo de frases que não esqueciam a exibição de uma inteligência vertida em palavra com posições novas ou já esquecidas do seu sentido”. E como é bom conhecê-lo ou relê-lo nesta visão invisível, uma inesperada e agradável visita a um superdotado literário.
Não vale a pena discorrer pela portentosa galeria que ele desvenda de homens, história e revelações. Pegue-se ao acaso em parágrafos de qualidade indiscutível:
“O génio é uma prenda do céu. Só nos cabe o cuidado de lhe fabricar um veículo, porque até ordem contrário seremos forçados a atirar pela borda o nosso fluido e, através das arte, hipnotizar suavemente o mundo”.
“Uma vez que a maior parte das pessoas encara a santidade como qualquer coisa insulsa e conforme a uma pureza legal, é provável que a depravação represente uma maneira do génio dos sentidos, quer dizer, de desvio até ao extremo de uma vertente de descida em liberdade e exterior às regras. Disto resulta que o génio tal como é aceite, ou antes, tal como é tolerado, constituía uma depravação espiritual análoga a uma depravação dos sentidos”.
“Com o ópio não se fazem experiências. Não conseguimos que ele nos divirta; casa connosco. O primeiro contacto dececiona. O benefício só aparece com o tempo e a beatitude manifesta-se quando é tarde para passarmos sem ela. O fumo punha-me doente. Precisei de quase três meses de enjoo para me habituar ao balanço e à arfagem do tapete aéreo”.
“Um monumento que serve ou serviu não nos deprime com nenhuma fadiga. O Coliseu servia, a Acrópole servia. A Esfinge servia. Por isso nos agradam. Não é preciso saber para que serviam nem tirar proveito dos seus serviços. O facto de terem nascido de uma necessidade, de um objetivo ter orientado aqueles que os construíram e obrigado a submeter-se a regras, retira-lhes toda a desordem e toda a frivolidade. Quer se trate de espantar, agradecer, dominar, assegurar a sobrevivência dos mortos com a parecença de um duplo, quer se trate de assustar com esta parecença os salteadores de túmulos, o ponto de partido não é temerário. Nunca as grandes épocas nos puseram em face de obras destetas. Um espantalho assusta os pássaros e não nos assusta. É a beleza de espantalho. É a das máscaras negras, dos totens, das esfinges do Egito”.
Trechos avulsos de um génio que se revisita como poucos, pelo fulgor do olhar, pela capacidade de assombrar, por se sentir que era talento inesgotável, moderno em toda a sua extensão, sumptuoso e heteróclito. Uma grande oportunidade para desvendar a chamada invisibilidade de um dos maiores escritores do século XX.