Vens do pó e em pó te hás de tornar
É um grande romance, prima pelo ritmo avassalador, pela capacidade alegórica, pelo manejo altamente temperado de um tempo de caos social e político, aquele tempo histórico em que se dançou à beira do abismo, a chamada guerra civil. Há gente que vem de África aos trambolhões, é tempo de fugir, no turbilhão que se instalou em Angola, ninguém encontra saída a não ser a fuga. Assim arranca esta obra magnífica de António Tavares “Homens de Pó”, Publicações Dom Quixote, 2019. Barcos a transbordar de gente, numa atmosfera de estado de sítio, o épico da fuga numa linguagem comedida, nada de lamechices: “O barco desencostou e partiu, soprando uma sirene rouca. Era um navio de transporte de combustíveis e cheirava a gasóleo. Não tinha cabines para passageiros; íamos no exterior. Debruçado na amorada, percebi que ia muito abaixo da linha de água. O cheiro empestava o espaço e ficávamos com as narinas a arder. O capitão era um muadiê mestiço que vestia um blusão de cabedal, calças e camisa azuis. Pequenas traineiras e outros barcos foram seguindo o navio. Saltavam as ondas como golfinhos. Rapidamente entardeceu. Víamos os morros da costa, uma falésia contínua que parecia um muro. Ao nascer do dia entrámos no porto de Luanda. A cidade estava debaixo de fogo. No céu cruzavam-se foguetes luminosos em conjunto com obuses voadores”.
Vieram de caos e chegaram a uma plataforma do Inferno, tudo tinha deixado de fazer sentido, é um caos primitivo, as gentes acoitam-se em hangares, e segue-se uma esplêndida descrição, entre o carrossel e o holocausto, de episódios da ponte aérea: “Uma sirene chamava quem tivesse força para ajudar no carregamento dos aviões. Era um silvo rápido e estridente. O que interessava era, num ápice, podermos escapar daquele sítio. Isto podia calhar a meio de uma tarde ou durante a madrugada. A ponte aérea não parava. Numas ocasiões mal dormíamos, noutras aguardávamos, como um escravo espera a morte. Os dias cansavam-nos a dobrar. Se nos deitássemos um instante, logo aparecia qualquer requisição que nos obrigava a levantar. A fadiga era tal que as pessoas nem sequer se zangavam”.
E num dia tal, deu-se a partida, seriam quatro da manhã: “Caminhámos até ao avião estacionado no fim de uma das pistas. O avião levava gente nos corredores acompanhada de tralhas que atolavam o espaço. Apesar da chunga que seguia no avião, o pessoal de bordo tinha um ar asseado e composto. Falavam dinamarquês, e sorriam. Questionei-me o que pensariam de nós aquela gente bem composta, confortável nas suas vidas. Afinal, eramos os desgraçados que tinham vindo salvar”. No entretanto, o narrador conta-nos a história do seu irmão, um rapaz fraco que quis ir à guerra onde encontrou a morte, deixou uma medalhinha. Chega-se à metrópole, a moeda angolana deixou de ter valor. É uma nova atmosfera com laivos de horror, uma tensão permanente: “Por todo o lado, havia vendedores a oferecerem fios de ouro, outros a impingirem peças esculpidas que garantiam ser de marfim, outros ainda com casacos de cabedal e bugigangas várias. Até diplomas universitários se vendiam. O importante era encontrar forma de sobreviver e, num ajuntamento onde se perdeu a dignidade, tudo se consegue com falinhas mansas”. Depois, a instalação, encontros e desencontros. E quem é narrador parte para uma empresa de terraplanagem, não sabe onde param familiares e outros amados: “Fui parar aos arranjos de ligação de um troço de autoestrada, perto do Porto. Eramos muitos; trabalhávamos como bestas e ganhávamos mal. Andávamos horas debaixo de um sol tórrido; alguns no meio do pó. Os sítios não tinham nomes, tinham números, o que os tornava uma simples coordenada na geografia. Algumas vezes trabalhava-se à noite, com geradores potentes a iluminar os aterros e sob os faróis da maquinaria. A poeira, batida pela luz dos projetores e sob o manto escuro da noite, criava um ambiente irreal e estranho. De resto, parecíamos estar fora do mundo”.
E chegamos ao tramo épico de um Império em pedaços desfeito, os seres humanos fazem pela vida, vêm de todas as parcelas, como o Bombazine, guineense, o FBP, nascido numa aldeia situada na fronteira entre Angola e o Zaire, o Rapaz-Ciência, um luandense dotado de poderes mágicos, Bruce Lee, o Patex, e o que adiante surgirá. O que resta desse império anda a buscar uma identidade num Portugal desconhecido, mas em franco tumulto, vive-se o PREC, há ligas de trabalhadores, associações de moradores, anarcas, extrema-esquerda, militares por todo o sítio, a 5.ª divisão, os militares formam frações, as ruas estiolavam de revolta, fala-se na reação, em fuzilamentos, na reforma agrária, lançam-se petardos, incendeiam-se sedes, surge Júlia na vida do narrador, é o seu supremo afeto entre os folhetins da revolução.
Os homens de pó vivem em Estaleigrado, ali comem e dormem e fazem a sua higiene. Chegou a hora das perdas: o Rapaz-Ciência morreu numa explosão, FBP juntou desveladamente os seus restos, a maralha anda pelas manifestações, dá-se uma estranhíssima simbiose entre reacionários e revolucionários, trocam-se epítetos nos comícios. Vive-se em mundos paralelos, entre a utopia e a realidade, é um viver presente, uma grande vontade de partir daquele caos político, daquela febre à conquista do poder, aquelas correrias entre comícios, até que se chega a 25 de novembro, parece que chegou a acalmia, lá fora, em certas parcelas do Império, caso de Angola, a guerra evoluía em várias frentes, era agora a vez de os africanos entrarem na fuga, no pesadelo, nos trilhos da morte, na hecatombe das minas.
Portugal vive em eleições, ganhara-se uma certa serenidade, muitos radicais foram presos, caso do FBP. Não há fim que não volte ao princípio, temos um grande final em que o narrador reencontra a mãe, imagine-se num circo, o público batia as palmas quando mãe e filho se abraçavam, ela vestida com um maillot branco e um chapéu de cowboy. “Era ela, sem tirar nem pôr, com as suas pernas elegantes, um cabelo loiro que não lhe pertencia, mas que lhe ficava bem. Ergui-me e gritei: Mãe! Mãe!”.
É a alegoria do reencontro, o significante na rede das insignificâncias, a retoma da identidade, as regras do sangue acabam sempre por se impor, a despeito de todo o mar encapelado.
Um grande, grande romance.