Uma revoada de clássicos da literatura de crime e mistério
Na década de 1940, surgia em Portugal uma coleção que se comprometia a publicar mensalmente um subgénero literário com largas décadas de tradições e um enorme auditório: a Coleção Vampiro, da Livros do Brasil. Autores como Agatha Christie, Ellery Queen, Dashiell Hammett, Dorothy Sayers, entre tantos outros, com capas inesquecíveis de um dos maiores ilustradores portugueses, Cândido da Costa Pinto, tornaram-se muito populares entre os seus devotos portugueses. Por detrás deste fabuloso património editorial, esteve um defetível selecionador de obras, Joel Lima. A Vampiro bateu todos os recordes de longevidade, superou todo e qualquer outra coleção de livros policiais, depois começou a claudicar, e um dia desapareceu.
Em Maio deste ano reaparece nas livrarias a Coleção Vampiro, e abre as hostilidades com dois clássicos, dois ícones de várias gerações: “Os Crimes do Bispo”, de S. S. Van Dine, e “Vivenda Calamidade”, por Ellery Queen. S. S. Van Dine (1888-1939) foi um escritor que logo na sua estreia, em 1926, foi aclamado pela crítica e pelo público. Os seus romances eram protagonizados por um detetive muito peculiar, Philo Vance, um investigador particular que graças à sua amizade com o procurador do distrito judicial de Nova Iorque, John Markham, teve acesso a casos espantosos que ele desvendou graças à sua cultura e sagacidade. Petulante, tradutor de Menandro e de Xenofonte, poliglota, os seus conhecimentos são vastíssimos desde a egiptologia à canicultura. Estamos num período ascensional do romance-problema, casos intrigadíssimos que embaraçam os peritos policiais. Acresce que o autor estruturava de forma exemplar as suas obras, como se fossem compostas de fascículos, a intriga saltita de um para outro e o leitor segue na onda. Vejamos como “Os Crimes do Bispo” são agora apresentados ao leitor: “Quando um homem conhecido como Cock Robin aparece assassinado com uma flecha cravada no peito, John Markham chama para a investigação Philo Vance. Logo Vance assinala a referência a uma conhecida lengalenga infantil. E rapidamente se torna claro que este será o padrão numa série de crimes extraordinários, arquitetados por um assassino de mente perversa, que mantém uma provocação constante à polícia através de cartas enviadas aos jornais”. O arranque da obra não dá tréguas ao leitor: “De todos os casos criminais em que Philo Vance interveio como investigador particular, o mais sinistro, grotesco e aparentemente o mais incompreensível, e certamente o mais terrificante, foi o que se seguiu aos famosos assassínios dos Greene. Todos os personagens aparecem esculpidos, ganham vida ao entrar em cena. Um só exemplo: “O professor Bertrand Dillard era um homem que aparentava ter 60 anos, ligeiramente curvado devido à vida sedentária e estudiosa que levava: rosto liso, e com uma cabeça braquicéfala bem pronunciada, coberta de espessos cabelos brancos penteados à Pompadour. Os seus olhos, ainda que pequenos, eram notavelmente livres e penetrantes; e as rugas ao redor da boca davam-lhe a expressão séria e grave resultante, muitas vezes, dos longos anos de concentração em problemas difíceis”.
Ellery Queen era o pseudónimo de uma dupla que se tornou famosa no final dos anos 1920. Ellery Queen, filho do inspetor Queen, foi autor e herói de mais de 30 romances, numerosas novelas, peças radiofónicas, filmes e séries de televisão. A par desta obra abundante, a dupla criadora de Ellery Queen foi responsável por uma revista traduzida em todos os continentes a partir de 1941, a Ellery Queen’s Mystery Magazine.
“Vivenda Calamidade” é a primeira e porventura a melhor obra do chamado ciclo Wrightsville, cidade província que o romancista escolhe para aí trabalhar num ambiente de tranquilidade, o que não irá acontecer, os hotéis estão totalmente ocupados, vai viver para a mansão da poderosa família Wright e assistirá a um congeminado e talentoso crime onde todas as evidências serão no grande final desmontadas como uma falsificação montada por um ente patológico sedento de vingança. À semelhança de “Os Crimes do Bispo”, “Vivenda Calamidade” tem uma estrutura soberba, uma tensão contida dentro dos limites que permitem manter o leitor absorvido e em que o ponto alto é um cocktail numa festa de passagem em que as aparências iludiram o verdadeiro drama subjacente.
Resta saber se estes clássicos podem emparceirar ao lado de obras como as histórias de Sherlock Holmes e as do inspetor Maigret. Este aplaudido e nunca esgotado filão da literatura de crime e mistério tem dado muitas voltas e hoje os seus grandes mestres situam-se na Escandinávia. Há cerca de um século, quando surgiram, quase por magia, estes romances-problema, dramas em espiral que só mentes extraordinárias sabiam e podiam descodificar, havia uma forte atração por densos enredos misteriosos. Era outro tempo, o espectro da comunicação social era bem diferente, estes enredos engenhosos eram lidos ao serão ou levados para viagem. E, muitas vezes, eram crimes pouco plausíveis, mas o peso da intriga e a revelação surpreendente em que o detetive até podia fazer justiça com as suas próprias mãos. Resta saber qual o grau de adesão entusiástica a estes mestres que encantaram gerações antes da televisão e do digital.