Um sonho da cultura de massas: O conhecimento histórico num livro de bolso – Sugestão de leitura
Desde que a sociedade de consumo de massas triunfou que se procura por via de livros condensados, de um modo geral profusamente ilustrados, criar a ilusão de que os ramos de conhecimento são sempre acessíveis em resumos, em seletas, em sinopses, tudo de tal modo organizado que em escassas horas de leitura o conhecimento histórico é rapidamente apreensível.
“50 marcos da história que precisa mesmo de saber”, por Ian Crofton, Publicações Dom Quixote, 2017, enquadra-se nesses propósitos. O livro é assim apresentado: “Muitas pessoas queixam-se de que o que aprenderam de História se limitou a meia dúzia de tópicos – os Romanos, os Tudor, os Nazis – e que não têm ideia nenhuma do que se passou entre essas épocas. Para ajudar a preencher esta lacuna aqui temos um livro fidedigno e estimulante que resumo os acontecimentos cruciais através de todos os continentes e épocas, desde os primórdios da agricultura há 10 mil anos até aos ataques às Torres Gémeas, em 11 de Setembro de 2001. Cada capítulo é acompanhado por uma linha de tempo detalhada de datas e acontecimentos, e condimentado com citações contemporâneas selecionadas de figuras tão diversas como Aristóteles, Saladino, Cristóvão Colombo, Galileu, Thomas Jefferson, Mary Wollstonecraft, Lincoln e Winston Churchill. Em cada artigo há ainda uma série de pequenos apontamentos que lançam nus sobre alguns tópicos fascinantes, das Linhas Nazca ao homem do Renascimento, do confucionismo ao cavalo de Alexandre, o Grande, da ciência islâmica e dos piratas da Barbária ao código Enigma e à bomba atómica”.
Um cometimento destes, pôr a História do Mundo em 200 páginas tem riscos inevitáveis. Reconheça-se que o autor é exímio como divulgador e estruturou com ponderação os momentos axiais da evolução da civilização e da cultura. Os primórdios da agricultura e as primeiras cidades é um bom ponto de partida, percorre o Egito, a Grécia, o império de Alexandre e o império Romano com destreza e ressalta os seus aspetos capitais. É aqui que comete um profundo dislate ao posicionar o cristianismo como um episódio do império Romano, tão mais grave como é sabido que foi o cristianismo que moldou o novo pensamento medieval e preservou as obras capitais da cultura greco-romana. Segue-se a ascensão do Islão e a vaga viking que introduziu mudanças substanciais na vida dos povos nórdicos. A omissão sobre o papel do cristianismo é tão mais grave quanto se sucede as cruzadas que tiveram consequências fundamentais na civilização e cultura europeias, geraram intercâmbios que mudaram a medicina, por exemplo.
A forma expositiva decorre de uma visão tipicamente europeia, daí cair do céu aos trambolhões a cultura hindu, a China imperial, os Mongóis, o Japão, os Incas e Aztecas, como se na cronologia estas civilizações e culturas não tivessem tido uma influência primordial muito antes da Europa se afirmar como um continente com economia próspera, instituições políticas, um processo cultural e artístico que virá a funcionar como um farol da humanidade.
O autor, quase como por descargo de consciência refere impérios e reinos de África, o que dentro desta ilusão da cultura de massas ainda torna ateia da evolução da humanidade mais emaranhada, até porque logo a seguir o leitor vai ser situado no Renascimento, verá emergir o império Otomano, repentinamente entramos no período dos Descobrimentos (ora este período inicia-se no século XV), segue-se a Reforma e a Contra-Reforma, depois a revolução inglesa e a revolução científica, mergulhamos numa nova onda que é a era dos impérios que, francamente, estava já esboçada com a consolidação dos Descobrimentos e a interligação Europa, América, África e Ásia.
Reconheça-se que tem sentido destacar o iluminismo, a primeira porta aberta para os valores da moderna democracia liberal e o período revolucionário subsequente (revolução americana e revolução francesa).
A era napoleónica vai conferir um novo rosto à Europa e a revolução industrial catapulta a Grã-Bretanha para o império dos mares. A Europa continental conhece uma onda de nacionalismo que fará nascer países como a Itália e recriar a Alemanha. De novo e fora de contexto fala-se da escravatura mais para enfatizar a sua abolição sem se ter dado a necessária enfâse ao seu comércio durante séculos. Os EUA tornam-se um gigante geográfico e económico e é consolidada a ideia de socialismo na revolução industrial. Inicia-se a longa marcha dos direitos das mulheres, as potências europeias envolvem-se em disputas e desencadeiam a I Guerra Mundial, finda a qual triunfa na Rússia a revolução soviética. Entra-se num período de boa receção às doutrinas autoritárias e cultiva-se o extremismo político, o fascismo e o nazismo movem as multidões, a doutrina racial nazi impele Hitler a fazer guerra sem qualquer na Europa e na União Soviética, isto enquanto a China vive na guerra civil onde triunfará o comunismo e o japão sonha em possuir um império. No rescaldo, descobre-se que houve uma tentativa de genocídio judaico, ganha uma expressão dramática o conflito ideológico entre Moscovo e Washington, formam-se blocos e desenvolve-se a Guerra Fria, a par destas tensões entra em ebulição a contestação à presença dos domínios coloniais, na Ásia e em África surgem novas nações, em simultâneo desenvolve-se conflitos aparentemente sem solução como o israelo-árabe. Finda a era comunista, inopinadamente recrudescem as movimentações extremistas islâmicas, hoje altamente condicionantes da segurança dos países ocidentais. É um mundo em que vivemos depois do atentado às Torres Gémeas.
Não se pode dizer que a obra falhou nos termos que está desenhado o enciclopedismo de massas, a cultura geral ao alcance de um livro, tem dados de importância relevante e muito estudo por trás. Reconheça-se que para muitos interessados até será um surpreendente ponto de partida para querer saber mais. Pena é que o livro de divulgação cometa os mesmos erros que tantos outros, com a sua visão eurocêntrica, com a deformação de que o Ocidente foi, é e será o farol da Humanidade.