Silêncio e Tempo em diálogo

‘’Na minha vida há sempre um silêncio morto
Uma parte de mim que não se pode
Nem desligar, nem partir nem regressar’’
Sophia de Mello Breyner Andresen, in O Tempo Dividido

Ela é a mãe. Simplesmente mãe. Como tal a identifico. Foi, é e será sempre mãe. Mãe uma só vez. De uma única filha. Que morreu. Em novembro.

– o grito amarelo, estridente e ondulante do INEM fugia pela avenida à frente da ambulância. Ninguém olhou a rua para lá dos vidros das montras repletas de doces –

Joaninha voou, e o tempo voou com ela. Mas não morreu. Ficou ali – o tempo dela, agora, é a mãe. Porque não há tempo, há memória. O hoje torna-se passado: na lembrança, o passado torna-se futuro, e o futuro é hoje. Apenas momentos, fragmentos da memória, sem unidade de medida.

– uma criança deixou cair no chão um copo de vidro que se estilhaçou em pedaços minúsculos e transparentes –

Diz Sebastião Salgado que as suas fotografias (ou as de qualquer amadorzinho como nós) são apenas realidade no ápice em que se dispara a objetiva e, logo nesse instante, se tornam irreais, deixam de ser a realidade, deixam de ser e de ter atualidade porque o atual passou, e não são futuro porque esse ainda não chegou. São apenas a “mística de um instante”, a micro parcela do momento.

A mãe entrara há pouco na terceira idade, mas, de vida, ultrapassava o quarto ou o quinto tempo de memória. Parece estar na casa dos cinquenta, de porte impecável, elegante e com uma postura que se nota logo à primeira vista. Com conhecimentos e retorquindo rapidamente a qualquer diálogo. No entanto, por vezes pára e fica suspensa, com o gesto incompleto e o olhar vago, como se, inesperadamente, tivesse ficado presa numa qualquer teia de aranha.

– na pastelaria entrou uma jovem com saia comprida estampada de retalhos. O tempo é isto, bocados de memória dispersos, sem cronologia e desarrumados. Retalhos que só rimam com emoções –

Depois volta ao agora, a tornar o passado presente. Mas a tónica da sua conversa cai sempre sobre a Joaninha.

 

Naquela primeira tarde, quando entrámos no café, já ela lá estava. Sentada a uma mesa. Sozinha. Ocupámos uma outra mesa que estava ao seu lado e, dali a nada, já a minha mulher entabulava conversa como se já se conhecessem de há muito. Confrange-nos a grande cidade em que ninguém se olha de frente.

– mentira: quantas e quantas vezes não somos abordados por jovens que nos olham nos olhos e insistem em nos ajudarem a levar os sacos das compras para casa! Um encanto… um mimo… –
Com a mãe foi assim, tal como já tinha acontecido noutros lugares com um grupo de novos amigos, que se foram ligando um a um.

Aquela mulher não aguentava mais viver a solo. Tinha uma necessidade extrema de partilhar, de rasgar-se aos bocadinhos para que os juntássemos e refizéssemos a sua história. Que era o vazio. Um vazio repleto de carícias, de segredos, de palavras, palavras, palavras. De ser ouvida e também de ouvir. Mas o nosso silêncio tornava-se vivo e ouvido nas suas palavras. No murmúrio da sua memória, do seu tempo.

– porque será que “A Caravela”, ali de fronte, tem sempre as portas fechadas? À hora das refeições já não se vê movimento nem se ouve o trinado dos talheres a acompanhar o fado ao vivo… –

E contou tudo, desde as raízes até aos frutos, amargos, sem perfume e sem cores: Em solteira, a irmã e ela ficaram sem pai muito cedo e viveram com a mãe (a mãe da “mãe” e também ainda a outra atrás dessa, que era avó…). Mas as duas irmãs nunca se deram bem. Depois conheceu um homem por quem se prendeu logo à primeira vista. Segundo dizia “era difícil alguém não se apaixonar por um bonitão como ele…”

Nasceu a Joaninha que cresceu rodeada de mimos e vontades feitas, “era um anjo”, que a boniteza do pai provocou o desfazer da família, levado por uma vizinha da frente, do outro lado da rua. Mas antes disso, e ainda em vida da avó, que sempre vivera com elas e com ele, no fim da adolescência a menina foi apanhada pela droga e, depois, pelos drogados. Passava noites sem aparecer em casa e um dia, quando apareceu, vinha doente – com SIDA. A sua Joaninha estava perdida. Aquele “anjinho de virtude e de bondade”, que era a sua única razão de viver, estava condenada a um fim trágico e doloroso. A mãe fez tudo quanto estava ao seu alcance, agarrou-se à religião, fez peregrinações, levou-a a exorcistas, a médicos e a hospitais. Nada lhe valeu – a sua querida e única filha morreu. Mas andava sempre consigo em retratos que trazia na carteira, e dentro de si. “É ela quem intercede por mim, a quem recorro, com quem converso, a quem ouço. Por exemplo – agora quando conheci os senhores e lhe contei, ela disse-me logo que podia confiar em vós, que eram bons amigos”

E lembrei-me de um poema de Ruy Cinatti (1915- 86):

– “Nós não somos deste mundo. / Fresca e limpa como a chuva, / ouço a tua voz cantada / desce do céu ao silêncio / que vem da terra molhada.” –
Encontrávamo-nos com muita frequência. Ela precisava saciar a sede da sua solidão com a água fresca das palavras. Desbobinava muitas vezes os mesmos factos, mas a sua Joaninha esvoaçava sempre, envolvendo-nos, fazendo círculos à nossa volta.

Até que um dia: “Sabem? Estou muito confusa e sofrida com uma carta que recebi hoje, marcando uma data para assistir à exumação dos ossos da minha filha, enterrada há oito anos. E eu não sei que fazer – vala comum, ou cremação? … não suporto a ideia de a minha Joaninha ser lançada na vala… vou optar por ser cremada, o que acham?” E o pai, perguntamos nós, também foi convocado? “Não sei nada dele nem onde pára” E quem vai com a senhora? “Ninguém, não tenho ninguém que vá comigo…” respondeu ela. Não, isso não – nós vamos.

Antes das nove já nós estávamos a atravessar o portão do cemitério do Alto do S. João. A larga alameda, bordada a pedra branca e preta, abria-se à nossa frente, tendo em primeiro lugar, como guarda de honra, à esquerda o mausoléu da Misericórdia, fazendo lembrar, na sua configuração e rendilhado, o mosteiro da Batalha; à direita a extraordinariamente bela última morada do Visconde de Valmor, no seu estilo arquitetónico, talvez desenhada por ele… De um lado e outro, bancos à sombra das tílias até à capela do crematório.

A mãe reconheceu restos de tecido do vestido da sua menina, estampado com flores azuis, também elas já sem vida e sem cores,
– “sinto os mortos no frio das violetas / só a morte é realmente real” (Adília Lopes – n. 1960) –

e, numa amargura fechada e comprimida, mas ungida com o mais doce amor, sentiu-a viva ao afagar uns quantos “cabelinhos” (como ela disse) que ainda restavam no crânio, de acariciar os maxilares, e de beijar a testa da filha…

Razão tinha Sophia quando disse: “na minha vida há sempre uma parte de mim que não se pode desligar”
Depois, todos os ossos foram embrulhados num pano e colocados dentro de uma caixa sobre uma essa em frente da “boca de cena” desta tragédia grega: o pano, de tecido vermelho escuro que, em pregas, tapava a boca do forno, abriu-se, engoliu a caixa e tornou a fechar-se. Lá dentro, as chamas devoraram rapidamente o que restava de uma menina que morrera aos 30 anos.

– César mandou incendiar Roma só para ver, tocando lira, o espetáculo da cidade a arder… –

O último ato foi inteiramente personalizado e interpretado ao vivo pelo Silêncio.

Enquanto esperávamos pelo fim, sentámo-nos num dos bancos da alameda, à sombra das tílias, ao frio e perfume das violetas. E, de repente, sentimos uma presença, muda, pesada e extremamente leve, como se fosse um enorme penhasco sobre uma nuvem. Era ele, o Silêncio. Que eu nunca ouvira tão vazio e tão cheio, tão presente e visível. Um silêncio absoluto. Esmagador, mas suave, sussurrante e belo. Enchia tudo – nada mais existia. Estava uma manhã límpida, clara e luminosa. Só uma leve brisa fazia bailar a sombra das folhas das árvores na renda do chão. Uma paz, qualquer coisa de eterno que nos arrebatava e nos marcava como uma unção. Estranho. Muito estranho. Mas belo, belíssimo.

Um homem, fardado e aprumado, apareceu trazendo nas mãos o pote de estanho com as cinzas. De cotovelos erguidos quase à altura dos ombros, fazendo cruz com o corpo. Aproximou-se de nós e destapou o vaso para mostrar o conteúdo: uma espécie de serradura branca. Encaminhámo-nos para a Rua 9 e descemos, ele sempre naquela postura impecável, a mãe ao lado dele e da filha, e nós dois atrás. O cortejo fúnebre por entre o silêncio de todos os jazigos laterais. Aquela insustentável leveza do peso. Todos os mortos, ao passar quatro únicas pessoas, se perfilavam e diziam “Presente!” Neles, todo o Tempo estava presente.

– “A história relata o que aconteceu / o silêncio narra / o que acontece” (JTM) –

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Le Besoin du Noble (Modo Menor, Silvæ), 2002 – 2003
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