Rumor do mar e do mais
“Tive amigos que morriam, amigos que partiam
Outros quebravam o seu rosto contra o tempo.
Odiei o que era fácil
Procurei-me na luz, no mar, no vento”
Sofia de Mello Breyner
in Mar Novo – Biografia
Novembro. A última sonoridade fúnebre do cantochão, extinguiu-se com a última badalada agonizante da meia noite. Por entre um nevoeiro cerrado. De cortar à faca. Melhor – sem qualquer cerração que fosse possível porque era de bronze oxidado.
Antes dessa última badalada, tinha deixado o meu barco aprontado: o carregamento até não poder ser mais, os mastros e as velas testados pelo vento e pela chuva dessa tarde. Nada falhou. Deitei-me tranquilo sonhando com aquela última viagem. O carregamento era original, colhido e construído com um fim. Mas o efeito superou o propósito. A carga era uma montanha ou uma catedral de crisântemos, enormes, encaracolados e apenas de duas cores – branco e amarelo. Ouro e prata. Sol e lua. Ou talvez um pequenino Estado, promotor do bem e da paz, que tem só essas duas cores? As flores salpicadas de gotículas da névoa, trespassadas pelas cintilações das estrelas mais próximas, eram, realmente, um presente real. O itinerário era o meu, mas o propósito, o fim em vista, não era esse.
Era novembro. E logo no dia dois tive o pressentimento de que só me restava uma canção. Só me restava uma curta viagem. O colher de uma flor. O deixar a onda enrolar-me e possuir-me todo. O banho lustral da primeira água. Onde se movimentavam e reproduziam as células primordiais.
A certa altura, não sei quando, ouviu-se um som aterrador, lúgubre e quase trovejante, de um búzio gigante vindo lá dos confins do mundo. Que subiu à superfície das águas como a erupção de um vulcão. E esse grito horrendo convocou todos os mares a se juntarem e a invadirem a terra. Que ficou quase submersa. A respiração fervente do vulcão e o sopro gélido das águas sobre a superfície líquida, gerou nesse momento as primeiras células vivas. Que se reproduziam vertiginosamente a cada bafo quente do vulcão, a cada sopro da ondulação do mar.
Aí apareci eu. E comecei a sonhar com o meu barco de papel. Mas como isto foram palavras inventadas por mim e não sabia o que isso era, comecei por perguntar ao primeiro irmão sapo que encontrei: “mas o que é um barco? Ele, que era enorme e tinha cada olho quase do tamanho do corpo, abriu de espanto os seus dois luzeiros sobre o charco como se fossem relâmpagos e virou a cabeça para o lado fingindo que ainda não ouvia… Por perto estava uma irmã salamandra, já com o seu fato camuflado, e fiz-lhe a pergunta: “e tu aí, sabes dizer-me o que é o papel?” Não sei qual das duas ignorâncias seria mais explicável. Por isso a camuflada enterrou a cabeça no lodo do pântano. E julgou que se tinha escondido toda, mas deixou o rabo de fora e… também não disse nada.
Depois (o que seria o DEPOIS?…) no gigantesco salto desse depois, dado no escuro do túnel do NADA debaixo de um temporal nunca visto ANTES, (nesse tempo não havia a palavra tempo. Hoje há a palavra… mas não há tempo) encontrei-me à deriva com a Arca de Noé. Já tinham soltado a pomba para lhes trazer notícias. E o vigia estava sempre à espreita. A certa altura, lá do cimo da gávea, (não tenho a certeza se aquilo seria já gávea…) ouviu-se a voz do vigia gritar: Alerta! Alerta! – aproxima-se um barquinho que traz, na ponta mais alta das velas brancas, um passarinho muito pequenino que gesticula, em morse, pedindo socorro.
E foi assim que passei a fazer parte da tripulação do capitão Noé.
Como eu digo, nesta minha história, o tempo é distorcido e anacrónico com os factos. Fazendo parte da legião de Noé, encontrei-me há dias no Portinho da Arrábida, com o meu barco vazio, a balançar na leve ondulação daquele dia. Aproveitei para apanhar sol, luz e o sopro marinho. Mas nunca pensei que fosse para colher, pedir, agradecer e adquirir crisântemos.
Que ainda por cima, tinham que ser apenas brancos ou amarelos.
São estas as cores do mais pequeno Estado do mundo. E… podia ser…
Consegui arranjar uma enorme montanha de crisântemos e decidi partir com eles no outro dia ao alvorecer. Mas quando cheguei ao Portinho, o barco já lá não estava. Ninguém conseguiu dar-me qualquer explicação. Mas, há poucos dias, recebi uma chamada telefónica em que o Francisco me dizia vir agradecer-me o que a minha atitude o comovera profundamente. E mais me confidenciou que mandaria desfolhar cada flor, pétala por pétala, e entregar ao piloto do seu helicóptero a satisfação de as lançar, ainda salpicadas do orvalho da sua bênção e das suas lágrimas, por cada corpo jacente no fundo, nas margens, em qualquer lugar do Mediterrâneo onde estavam sepultados milhares e milhares de vítimas do ódio, da violência, da maldade, com a missão de dizer a cada um deles que ele, Francisco, os abençoava, pedindo, agora sim, a Paz e Amor e o Bem para todos o humilhados e ofendidos, todos os violentados que tinham “quebrado o rosto contra o tempo”.
Respondi-lhe apenas: Beijo-lhe as mãos, Francisco!
E tornei a procurar-me “na luz, no mar, no vento…”
O filósofo José Reis diz que “tempo é a passagem de uma perceção a outra”. Se ele pensa assim, eu penso que esse intervalo entre as duas perceções é o Nada. E, assim o tempo não existe. Por isso, os tempos das minhas viagens não são anacrónicos.
Tanto posso aparecer no terceiro dia do Génesis, como numa aventura do último dia do Apocalipse. O que interessa é eu conseguir fazer-me acompanhar de todos os tripulantes dos barquinhos de papel que hoje poderão (e deverão) ser feitos de papel forte mas impresso, onde as palavras sejam mensagens. E na degradação deste mundo que atravessamos, surge tudo o que é possível e necessário fazer pelos outros. Este é o destino do meu, do teu, dos barcos de papel apenas feitos de sons ou de imagens. E temos que viver para este ideal de nos encontrarmos todos “na luz, no mar, no vento”.
AVÔ, TU TAMBÉM JOGAS FUTEBOL?
O futebol é que joga com o teu avô.
Com quem estás a falar?
Contigo, comigo, quando eras pequeno.
Com este menino descalço?
Com esta alma despida.
Avô, tu também tens alma?
Espero que sim, senão estaria muito só neste mundo.
Sentes-te só?
Creio que sim, neste mundo.
Em que mundo?
Neste mundo interior desconhecido dos outros.
Ainda tens um mundo interior?
Espero que sim, só neste mundo é que te sentes livre.
Faz-nos sufocar de ternura, de beleza e de verdade, este excerto extraordinário do livro “Vou comprar uma cana de pesca para o meu avô”, de Gao Xing Jiam, escritor chinês, Prémio Nobel da Literatura 2000.
É por estas rotas de barcos cheios de abraços, cheios de corações a bater, que chegamos ao NATAL.
Passei por perto de Belém, na Judeia, e saí para dar uma volta. Mas fiquei admirado e curioso de saber o que levaria tantos pastores e pastorinhos, muitos da minha idade, a descer as veredas cantando Glória, Glória!, com cordeirinhos às costas e cestos de queijos e pombos e ovos. Tentei saber. E soube que naquela noite nascera, pobremente e numa manjedoura, um menino que lhes trazia a salvação. Incorporei-me no cortejo e também fui ver o menino. Tão pequenino e mesmo quase acabado de nascer, olhou para mim e sorriu-me. Nunca mais esquecerei esse sorriso…