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Regressar a casa

“No princípio
A casa foi sagrada –
Isto é habitada
Não só por homens e por vivos
Mas também pelos mortos e por deuses”
Sophia de Mello Breyner Andresen in “Ilhas” (Habitação)

Até aos 18 anos vivi numa casa muito pobre. Telha-vã, por onde entravam as pedras do granizo, outras telhas de vidro por onde entrava a luz em casa. Pelo vidro das telhas e pelo postigo sem vidro. De noite, a casa era iluminada por um candeeiro a petróleo. A luz que me alumiava a casa era só esta e eu estudava e devorava livros incendiado por esta luz. Unicamente. Porque a casa não tinha uma só janela. E, se queria ver a rua, tinha que assomar-me ao postigo. E era habitada por nós e pelos que a ela se acolhiam, vivos. Outros a crescer. Mas também pelas sombras dos deuses que nos protegiam e acariciavam, roçando o hálito pelo nosso rosto.
Apesar de tudo, ou talvez mesmo por este sabor sagrado, os amigos gostavam de lá ir, de lá estar. E havia o amor de mãe que fazia as festas de aniversário, onde todos compareciam e conviviam. Falávamos de jogos, de brincadeiras e de livros (!) Porque todos sabiam desta minha precoce paixão e a tornavam realidade nesse dia. Mas também havia os lanches de café com leite e pão quente, acabado de chegar do forno, com “manteiga encarnada”, bolos de torresmos, biscoitos fritos e outras especialidades.

Um dia tive que partir. E deixei este santuário levando como bagagem o sonho de quando “fosse grande” poder ter uma casa com janelas. Vim para a grande cidade, por “quem” me tinha apaixonado desde a primeira vez que por ela passeei o coração e os olhos. Aos 9 anos. Mas voltei todas as férias de verão.
Passei por casas maravilhosas. Comecei pelo Bairro Alto, habitando, na Rua da Vinha, as águas-furtadas de um palacete setecentista, com um largo portão por onde entravam coches e tipóias e cavalos atravessando o grande pátio interior para serem recolhidos ao fundo, nas cavalariças. A larga e escura escada era toda em pedra gasta e encurvada, apenas com duas ou três frestas pequeninas a deixar entrar o sol. Ocupei um quarto, subarrendado a um barbeiro que, diariamente, ia prestar os seus serviços a casa do António Ferro. Mas lá no alto da trapeira havia uma janela, com um craveiro no peitoril, donde se avistava, como se estivesse logo ali à mão, o zimbório da Basílica da Estrela recortado e resplandecente por magníficos pores-de-sol. Nesse tempo (década de 40) havia determinações específicas e especiais para, de noite, não se ver luz dentro das casas, e para que, obrigatoriamente as janelas tivessem uma quadrícula de tiras de papel colado, em diagonal, para lhes dar maior resistência num eventual bombardeamento. Estávamos em plena 2.ª Grande Guerra.
Depois, foi o deslumbramento de uma casa do poeta António Lopes Vieira, na Costa do Castelo, toda virada para o mar de casario da Baixa. Uma noite, agarrado à vidraça de uma sacada, assisti ao espetáculo de um temporal, com o estrondoso ribombar dos trovões e da música da chuva sobre os telhados, a acompanhar a dança espetacular dos relâmpagos a rasgar as entranhas do firmamento.
Daí saí para a Barão de Sabrosa, ao cimo da Alameda e por detrás da Fonte Luminosa, mergulhando o sentimento na cascata colorida e donde fazia o caminho para o Quartel da Graça, onde cumpri a recruta militar, e para o outro extremo da Alameda onde trabalhei na Estatística. Assim se passaram os meus últimos quatro anos efetivos de Lisboa. E agora, nesta segunda década de 2000, já se passaram mais de outros quatro.
Este foi o meu percurso na grande casa do mundo – porque o mundo, para mim, continua a ser casa.

E regressei às origens, onde o destino traçaria o meu futuro – “e o meu futuro foi aquilo que se viu”. Uma casa no Largo da Portela, paredes meias com o meu vizinho Senhor dos Passos. Dois anos depois casei, e fomos viver para Lagos, onde a minha mulher estava a trabalhar. Por tudo, essa foi uma casa que ficará para sempre “à beira da memória”. Um ano depois a nossa primeira filha estava para nascer. E tivemos que optar entre o trabalho do ofício ou o ofício do trabalho de mãe. Eu deixei de ir aos fins de semana a Lagos e regressámos os dois à casinha da Portela. Dois meses depois éramos três (mais os meus pais). Mas tudo se multiplica e, ao fim de trinta meses nascia a terceira filha. Três filhas em trinta meses certos. A diferença é que estas duas já nasceram na casa de família dos avós maternos, a casa vermelha da Rua Dr. Bernardino. E a casa foi “sagrada habitada por vivos, mas também pelos mortos e por deuses”. Os mais antigos já ali tinham morrido, e os anjos começaram a aprender a voar por entre aquelas paredes.
Se o mundo é uma casa, a casa foi sempre um mundo.
Seguiu-se a casa da Rua de S. José onde, três anos após o nascimento da terceira filha, nasceu a quarta. Todas nasceram em casa, provando que a casa é o lugar onde se nasce e se morre, sobretudo onde se vive. É o leite materno. É o embalar do pai. O carinho e o encanto dos avós.
Depois… foi o renascer do sonho de todo o meu crescer. Um ninho de vidro, sem uma janela, porque todo ele é uma continuidade de janelas unidas pelo encantamento. Penduro-me no beirado e vejo o mundo. Céu e serra e casario e sol e lua e estrelas, é tudo meu. Porque o meu coração habita em todo este universo. Pouso nas hastes das cerejeiras em flor e das laranjeiras e gorjeio o meu trinado numa voz de tenor extraterrestre. E embebedo-me no perfume das rosas e dos jasmins e, meio tonto, torno a olhar para o horizonte, a cair de paraquedas no cimo da Picota. Ali está ela, a minha casa, na Rua de S. Pedro, rodeada de camélias e de hortênsias, de buganvílias e de agapantos, de frésias e de malvas. Sempre à minha espera esta minha casa. A que eu assisti ao levantar dos caboucos, ao erguer das paredes e dos vãos e do telhado, dos alpendres e dos pilares. Uma casa que faz parte da história e da memória do sempre. Pois ali morreram a minha sogra e a minha mãe e onde, por incrível que pareça, nasceu (em casa!) a nossa primeira neta. É aqui que moro há cinquenta anos.

Monchique – a serra as pedras e as fontes os castanheiros as rosas-albardeiras o alecrim e a murta as ribeiras e as pontes as veredas e as vielas as andorinhas e as águias serão sempre a minha casa.
Tudo isto foi a minha primeira morada. E será a última, se Deus quiser.

Deixei Monchique por vários motivos que, muito embora viessem ao caso, não vale a pena apontar. Porque me magoa esta nossa casa comum não ser vista e impulsionada como merece. Embora as casas vão desaparecendo e os buracos ficando à vista como a falta de dentes numa boca desdentada, a alma das casas continua a habitá-las para quem as conheceu a elas, casas, e para quem conheceu e estimou as pessoas que por lá passaram. Mas tenho uma consolação:
Nos primeiros dias deste mês voltei à minha terra por apenas 24 horas. E ou a saudade já era muita ou o ressentimento mais conformado, a verdade é que gostei verdadeiramente deste regressar a casa. Foi maravilhoso ver tudo e sentir tudo como se fosse uma primeira vez. Tudo me parecia novo, recém nascido, nesta casa que é nossa, nessa casa que é minha. De uma surpreendente novidade e beleza. De uma estranha harmonia. Pelas ruas, pelos espaços vazios ou pelos poucos ocupados, parecia acompanhar-me a vibração da Carmina Burana, de Carl Orff, o cântico pagão de um bacanal tornado místico e sagrado. E a música saía por todas as brechas.
Ao entrar em minha casa, que sensação estranha! Parecia-me nunca ter visto nada do que lá está e era como se tudo gotejasse lágrimas de alegria pelo limbo pendente das folhas de cada arbusto, e por cada pétala da corola das flores. E a Carmina trazida sempre ao ouvido pela brisa que me enchia os pulmões. O espírito das coisas.

Todo o universo é a casa que habitamos. De passagem. Mas se esta casa que conhecemos tem a vista, o som, o cheiro, o tato, e o sabor do chão da terra que pisamos, como não será o habitat que nos espera?! O regressar a casa de onde todos saímos desde o primeiro dia da construção da casa que é o Homem?…r

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