Quimera
O Homem nasceu para a verdade: procura-a quando ela lhe falta; estima-a e acarinha-a quando crê tê-la encontrado. E tão avesso é à mentira e ao engano que, sempre que para aí o quiseram empurrar, foi preciso seduzi-lo com fantasmas a que o Poder1 teve que dar toda a aparência de realidade. A essas imposturas, criadas desde o alvor dos tempos para domar os povos, levando-os a acreditar em sedutores projectos de hipotético bem comum, em visões fantasiosas de grandeza e em ilusões ou outros devaneios impossíveis de concretizar, se chamam quimeras, por mais não serem, afinal, que os produtos da “imaginação perversa”2 de quem pretende, sem consistência legal nem fundamento real, eternizar-se na exploração deles – dos povos, claro! – e dos seus recursos económicos e culturais. Na mitologia grega, a Quimera era uma criatura fantástica e maléfica, geralmente descrita como um híbrido com cabeça de leão, corpo e cabeça de cabra e cabeça e cauda de serpente, que lançava fogo pelas ventas3 e que sobrevivia do medo dos cidadãos e da inépcia dos seus líderes. Filha do pavoroso titã Tifão e da ninfa-serpente Equidna, a mãe de todos os monstros4, a Quimera comprazia-se em devastar as aldeias das regiões da Cária e da Lícia e em devorar os seus rebanhos, quando o rei Ióbates encarregou Belerofonte5 de a matar. A intenção do rei era de desagravar a honra de Preto, seu genro e rei de Tirinto, o qual acusara falsamente o herói de tentar seduzir-lhe a esposa, Anteia, enviando-o para o que acreditava ser uma morte certa. Mas Belerofonte, auxiliado pela deusa Atena, capturou e domou Pégaso, um cavalo alado mais veloz do que as chamas que a Quimera soprava, e, pelejando sobre os ares, matou-a, para tanto socorrendo-se de uma lança impregnada de chumbo, que fundiu ao contacto da goela inflamada da besta, queimando-lhe as entranhas6. Esta legenda, que o Cristianismo adoptou substituindo Belerofonte por São Jorge e a Quimera por um dragão, descreve-a Plutarco nas “Obras Morais” de forma mais prosaica: Belerofonte teria sido, afinal, um príncipe da Lícia e a Quimera um capitão pirata chamado Chimarros, cujo barco, ornamentado com uma cabeça de leão à proa e um dragão à popa e sobre cuja vela estava representada uma cabra, assolava as costas daquela região da Anatólia, com grandes prejuízos para o comércio local. Então, Belerofonte apossou-se de um veloz navio de nome Pégaso, abordou o barco pirata, afundou-o e matou Chimarros, devolvendo a paz e o bem-estar ao seu povo. O mito da Quimera oferece-nos um vasto leque de interpretações, pois os animais que o compõem são tradicionalmente portadores de múltiplos símbolos, pese embora o sentido que lhes é dado na actualidade não seja para nós tão evidente quanto podia ser naquela época. Inversamente, os animais podem servir de símbolos e emblemas, o tema clássico da vitória do herói sobre o monstro podendo interpretar-se a todos os níveis, do psicológico ao colectivo (vitória de um povo ou de uma religião ou ainda de um partido político sobre um outro), sendo única condição a de reunir índices de ligação do monstro ao vencido e do herói ao vencedor. Assim, se na Antiguidade a Quimera era considerada como um símbolo do carácter vulcânico e instável do solo da Lícia7, já na Baixa Idade Média simbolizava a tentação e os desejos condenáveis para, a partir da Idade Moderna – mais propriamente desde o ano de 15438 (sob a forma chimera) – indicar, como substantivo feminino, uma esperança ou sonho que não é possível alcançar: uma utopia! Na linguagem corrente, o uso do adjectivo quimérico (que confunde realidade com fantasia), datado de 16779 e do verbo quimerizar (criar quimeras ou admitir algo quimericamente), de 183610 relaciona-se, portanto, com o que é fruto da imaginação, com o fantástico, o fictício, a fábula ou a miragem. Outras ciências humanas se socorreram desta palavra, nomeadamente a Arquitectura, a Pintura e a Escultura para designarem representações de gárgulas (algerozes) no alto das fachadas das catedrais medievais e nos próprios vitrais desses templos, e ainda nas iluminuras de vários manuscritos medievais. Pode-se vê-las, em Portugal, no claustro dos Jerónimos, no pátio interior do palácio da Pena, em Sintra, e no Convento da Conceição de Beja. A Ictiologia aplica a palavra quimera a um peixe cartilaginoso de grande profundidade da subordem dos Holocéfalos, família dos Quimerídeos, aparentado com os tubarões e as raias, de que duas espécies vivem na costa de Portugal (Chimaera monstruosa Lineus e Chimaera alfinis Capelo) vulgarmente conhecidas por papagaio-do-mar e por peixe-rato. Popularmente, dá-se também o nome de quimera a um género de borboletas brancas e pretas, abundantes em Portugal, que os estudiosos da lepidopterologia11 classificam como Atychia funebris.
Citações:
1 – “O povo, coitado, imagina essas quimeras para se consolar na desgraça.”; Almeida Garrett in “Frei Luís de Sousa”, acto 1.º, cena III.
2 – “Vereis que a poesia, onde rescendem perfumes de religião, não é uma quimera.”; Camilo Castelo Branco in “Anátema”, cap. IX, pág. 70; Europa-América – Livros de Bolso (77).
3 – “A teoria do anarquismo… Não há nela proposição que não seja quimérica.”; Eça de Queiroz in “Os Anarquistas”, pág.22; Editora Centauro.
4 – “Um belo ideal político é uma quimera, se as energias nacionais o não aceitam.”; Guerra Junqueiro in “Prosas Dispersas (Átila e Joana d’Arc)”, pág.147; Lello & Irmão.
5 -“Uma vela que passa, na distância, Acorda o génio, a tara da aventura. Surgem logo a quimera, o sonho, a ânsia de partir, de fugir. De ir à procura.”; João Braz in “Esta Riqueza que o Senhor me Deu”, pág. 48; Edições SIT.
6 – “Não confundas as quimeras com a quimera que provaste na revolução”; Álvaro Guerra in “A Guerra Civil”, 1.ª parte (1828-1832), pág. 197; Publ. D. Quixote, 1993.
Notas:
1 Entenda-se por Poder, até ao final do século XIX a aliança Nobreza + Igreja e, daí em diante, o eixo Maçonaria + Finança + Políticos.
2 V. “Mitologia Grega”, Volume III, Capítulo VI, 2, pág. 213; Junito de Souza Brandão; Ed. Vozes – Brasil.
3 Assim a descreve Homero na Ilíada: “leão pela frente, serpente por trás e cabra ao meio”, precisando ainda que esse monstro fora criado em Patera pelo rei da Cária, Amisódaro.
4 Contam-se, entre as numerosas criaturas monstruosas geradas por Equidna: Cérbero, o cão de três cabeças guardião do Hades; Sfinx, a Esfinge de Tebas derrotada por Édipo; o Leão de Nemeia, morto por Hércules (1º trabalho); a Hidra de Lerna, também morta por Hércules (2º trabalho); Dracon, o dragão da Cólquida guardião do Tosão de Ouro; Ladão, o dragão de cem cabeças que protegia o Jardim das Hespérides; Ortros, o feroz cão bicéfalo, guarda dos rebanhos de Gerião, morto por Hércules (10.º trabalho); Cila, o monstro marinho de seis cabeças e doze pés contra quem lutou Ulisses (in “Odisseia”); e Ethon, a águia que todas as manhãs devorava o fígado do titã Prometeu, castigo que lhe fora imposto por Zeus por ter revelado o fogo aos humanos e igualmente morta por Hércules.
5 Bel é uma raiz indo-europeia com a conotação de potência, vigor; Phóntes equivale a abundante, cheio de. Assim, Belerofonte significa aquele que é cheio de força.
6 In “Odes”, de Píndaro.
7 O historiador Ctésias de Cnido, citado por Plíneo o Velho, identificava o monte Quimera, situado no sudoeste da actual Turquia, como uma região composta por cerca de duas dúzias de chaminés abertas no solo, com permanentes emanações de gás metano inflamável.
8 Cf. Prólogo de João de Espera em Deus à “Comedia Eufrosina”, de Jorge Ferreira de Vasconcelos: “E inda mal, & inda negra, porque eu na chimera de suas subtilezas, ando rasteiro entre os pés das Serpentes”.
9 Cf. RibITeod
10 Cf. SC
11 Área da Entomologia que estuda as borboletas e as mariposas.
Autor: Fernão de Quintanilha