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Quando os livros de crime e mistério se pareciam com livros de aventuras

O romance policial britânico distinguiu-se em toda a linha das correntes norte-americana e francesa, ao longo do século XX. Não se alude só aos ambientes, nem ao perfil dos detetives nem ao manancial de engenhos científicos e outros artefactos para descobrir os culpados. Recorde-se que pelas décadas de 1930 e 1940, por exemplo, os norte-americanos já dispunham de Ellery Queen, dedutivo e imaginativo, com rebuscadas tramas, o pedante detetive Philo Vance, criado por S. S. Van Dine, um quase romance negro saído das mãos de Dashiell Hammett e Raymond Chandler; os franceses eram mais aficionados pela série negra até que surgiu Georges Simenon que criou o comissário Maigret, o mais comum dos mortais, sempre pronto para uma petiscada na taberna e preparado para longos e penosos interrogatórios, com surpreendentes confissões, era classificado como o mais carne e osso dos inspetores. A escola inglesa foi sempre outra coisa, que o leitor se lembre de Dorothy L. Sayers, Agatha Christie, Edgar Wallace, Anthony Berkeley e esta senhora de quem hoje vamos falar, Margery Allingham. Que distância entre Hercule Poirot, Lord Peter Wimsey ou Albert Campion, este o detetive ao serviço de Margery Allingham! E também os cenários contam, a arquitetura da história e quanto aos enredos nem vale a pena falar. Margery Allingham distinguiu-se dos seus pares pelas histórias rebuscadas e sofisticadas, o seu detetive, Albert Campion, era quase um mutante, um génio do disfarce. Mas o que releva destas histórias é que há sempre um mundo de aventuras, de peripécias que metem manha e músculo. Atenda-se ao que propõe o livro “Crime na alta-roda”, por Margery Allingham, Livros do Brasil, 2019: “Por altura das Cruzadas, o pequeno estado de Averna, nos Balcãs, fora oferecido a uma família de pioneiros britânicos e, durante séculos, parecendo sem valor, permaneceu esquecido. Mas após um terramoto que abalou o centro europeu, o contexto é alterado e aquele território adquire primordial importância para a Coroa Inglesa. Após anos e anos de abandono, será possível encontrar provas da sua legítima propriedade? É esta a missão que é confiada ao irreverente detetive Albert Campion. Juntamente com três fiéis companheiros de armas, parte em direção à Aldeia de Pontisbright, em busca dos herdeiros de Averna, e instala-se num moinho a cargo da bela Amanda Fitton. Certa de poder ajudar na resolução do enigma, Amanda vai juntar-se a Campion na investigação e não hesitará em enfrentar com ele os perigos mais inesperados – quando no seu caminho se atravessa um criminoso disposto a tudo para atingir os seus próprios fins”.

Qualquer dúvida que houvesse desta mescla de aventura e ação e crime, fica esclarecida com a síntese da obra. Um cavalheiro desprovido de escrúpulos, o vilão do romance, Brett Savanake, ensaia assassinatos e anda na peugada de Campion. Um dos companheiros de Campion explica o aspeto fulcral da missão, houvera uma perturbação nos Alpes da Bósnia, pedaços de rocha tinham sido arremessados para todos os lados: “Até ao ano passado, a verba era uma pequena planura ou vale, à exceção de um único túnel estreito, através do qual uma corrente de água descia da montanha para o mar. Creio que um dos primeiros condes de Pontisbright tentou percorrer esse túnel, sem nunca ter emergido do outro lado. Mas agora, desde a perturbação local do ano passado, deixou de ser um túnel, transformando-se de uma racha entre penedos, o mar subiu por ela e Averna possui atualmente uma diminuta linha de costa, fazendo daquele local um maravilhoso porto natural. Há provas de que no terreno que fica por detrás do castelo existe um campo de petróleo a explorar”. Acesso ao mar e petróleo eram incentivos suficientes para que a Grã-Bretanha se pusesse em campo. Os bons e os maus avançam para Pontisbright, começa uma autêntica caça ao tesouro para encontrar a documentação que legitime a propriedade de Averna, a Coroa do monarca, e muito mais. Os três mosqueteiros vão até ao moinho, um universo bizarro onde se guardam segredos inestimáveis. Procura-se herdeiro e procura-se tesouro. Há códigos para decifrar. Uma inscrição na madeira, por baixo da base circular de um relógio de sol:

“Se Pontisbright coroado for,/ Três acontecimentos estranhos verá./ O diamante tem de ser dividido em dois/ Antes de usar a sua coroa de novo./ Três vezes terá de ser tocado o grande sino/ Antes do ceptro ele empunhar,/ E quando vier reclamar o seu direito de nascimento/ O tambor de Malplaquet deve ser rufado.”

Há um médico semienlouquecido, o Dr. Edmund Galley, que vem apimentar a história, fará reuniões que parecem ter uma carga de exorcismo. Campion, que parece prezar a luta em campo aberto com o inimigo, encontra-se em Londres com o vilão Brett Savanake. O vilão apresenta-se como empresário, a sua firma é uma potência mundial, prepara o desvio do herói da história para uma viagem de barco, Campion sabe trocar as voltas a quem o procura afastar. Inevitavelmente, avançamos para a clarificação de quem é quem no trono de Averna, ouvir-se-á o toque do tambor, abrem-se caixotes, encontram-se joias, descobre-se a Coroa e dá-se um embate feroz entre o vilão e Campion, tão palpitante e dinâmico que um bom realizador de cinema não desdenharia. No entretanto, toca o sino, o Dr. Galley parece enlouquecido, estala uma tempestade, estão constituídos os bons ingredientes para a luta corpo a corpo entre o vilão e Campion, Margery Allingham sabe da poda:

“Com um esforço sobre-humano, o indivíduo levantou o braço e disparou. A bala passou inofensivamente sobre a cabeça de Campion, mas aquele movimento fora excessivo para o homem que se encontrava na água. Ao erguer o braço, o ribeiro prosseguiu no seu aperto e ele escorregou para debaixo das tábuas.

O firme estrondear da roda, tão monótono, tão contínuo, pareceu aos ouvidos horrorizados de Campion deter-se por um instante e um estremeção, tão reduzido e contudo tão terrível, perpassou pela grande edificação branca. Nada mais. Depois, ficou tudo em silêncio, salvo o permanente rugido dos trinta algerozes de ferro”.

Todo e qualquer aficionado de crime e mistério num enredo aventuroso, com ressaibos de magia e segredos de Indiana Jones, não pode perder esta leitura.

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