Quando Jean Cocteau deu escândalo com as suas confissões
“O Livro Branco seguido de O Fantasma de Marselha”, de Jean Cocteau, Sistema Solar, 2015, faz parte de uma literatura confessional que provocou escândalo, se pensarmos que em 1928, alguém que se impunha na dramaturgia e nas artes plásticas, tinha audácia de começar um livro dizendo: “Por mais atrás que eu volte, e mesmo na idade em que o espírito ainda não influencia os sentidos, encontro rastos do meu gosto por rapazes”.
Aníbal Fernandes, que traduz e apresenta a obra explica a profundidade desta audácia, recordando grandes nomes da literatura como Balzac, Francis Carco e Marcel Proust que tinham passado ao lado de afirmações diretas sobre a atração sexual entre homens. Este Livro Branco, diz ele, é uma autobiografia sexual entrecortada por atrições místicas, cheia de máscaras e portas falsas. Os reconhecidos símbolos da sua futura obra já ali se alinham num cortejo anunciador de homens cavalos, ciganos, marinheiros, espelhos onde o narciso se reflete e vence a superfície que o mostra a envelhecer, a aproximar-se da morte.
Concluído o texto, Cocteau hesitou na sua publicação, teve em conta as amarguras porque passaram escritores como André Gide, insultado e caluniado pelas suas confissões. Fez então uma tiragem de 25 exemplares, que circulou por uma audiência seleta. O mesmo Gide que fora audaz nas suas confissões depois de ter lido esta obra de Cocteau, anotou no seu diário: “Que inútil agitação nos dramas que ele conta! Que afetação no estilo! Quanto artifício! Reconheça-se, no entanto que certas obscenidades são contadas de maneira encantadora. O que choca, e muito, são os sofismas pseudo-religiosos”. Em 1930, o Livro Branco conhece uma tiragem de 450 exemplares, sem nome de autor. Só em 1981 acontece a primeira edição francesa do livro com nome de autor. E volta a observar Aníbal Fernandes: “O Livro Branco passava a ser um Cocteau assinado, não para ficar entre os seus melhores momentos em prosa mas como sua única confissão sexual direta”.
Abre-se a obra e percebe-se que eram confissões interditas pela moral da época: “Sempre amei o sexo forte, que me parece legítimo chamar o belo sexo. Os meus problemas chegaram de uma sociedade que condena o raro crime e nos obriga a modificar inclinações”. Feita esta declaração, então bombástica, põe a memória em funcionamento, os seus sentimentos de jovem e adolescente, histórias de metem travestis, chulos, bissexuais, ópio e separações dramáticas. Compreende-se como hoje é aqui que certas antologias da literatura homoerótica vêm buscar páginas de ouro. Um só exemplo:
“O corpo do Alfredo aproximava-se bastante mais daquele que os meus sonhos adotavam, do que o corpo jovem poderosamente armado de um adolescente qualquer. Perfeito corpo, os músculos aparelhavam como o cordame aparelha um navio, e com membros que pareciam desabrochar em estrela à roda de um velo onde se erguia – ao contrário da mulher, feita para o fingimento – a única coisa que no homem não sabe mentir”. A religiosidade toca-o, leva-o a vacilações de arrependimento: “Sempre fui crente. Com uma crença confusa. Ao frequentar um ambiente puro, ao ler tanta paz nos rostos, ao compreender a estupidez dos incrédulos, eu aproximava-me de Deus. Claro está que o dogma casava mal com a minha decisão de consentir aos sentidos a sua estrada, mas este último período tinha deixado em mim uma amargura e uma sensação de fartura em que eu quis ver, com pressa excessiva, as provas de ter errado o caminho”. Aníbal Fernandes é um obreiro notável para nos fazer o retrato dos “anjos caídos” que se atravessaram na vida de um dos intelectuais mais polifacetados da cultura francesa. É um rol vasto, tudo começa com Raymond Radiguet, um talento promissor que deixou, entre outras obras ed primeiríssima água, Le Diable au Corps. Observou Cocteau: “Mal encontrei Raymond Radiguet adivinhei, posso dizer, a sua estrela. Era pequeno, pálido, míope, com cabelos mal cortados a caírem no colarinho e enrolados em anéis. Dos bolsos tirava pequenas folhas de caderno escolar que lá voltava a meter amarrotadas em bola (…) Conferia às velhas fórmulas a juventude que elas tinham. Tirava a pátina ao já dito. Desoxidava os lugares-comuns. Quando lhes tocava, parecia que as suas mãos desajeitadas voltavam a pôr na água uma concha qualquer. Era o seu privilégio. Não só inventou e nos ensinou essa atitude de espantosa novidade que consistia em não termos ar de original, mas também nos deu o exemplo do trabalho (…) Os seus romances, e sobretudo Le Diable au Corps, na minha opinião fenómenos tão extraordinários no seu género como os poemas de Rimbaud, nunca beneficiaram da ajuda dos nossos modernos enciclopedistas. E foi ele quem me ensinou a não me apoiar sobre nada”.
Pode não ser o melhor Cocteau, mas há para aqui algumas pepitas de ouro, gotas cristalinas de uma ousadia sem paralelo no tempo em que viveu.
Autor: Beja Santos