Priapismo
O priapismo é uma síndrome genital caracterizada por erecções violentas, dolorosas e persistentes, mas que não despertam qualquer desejo sexual nem são seguidas de ejaculação, na qual o pénis erecto, apesar da ausência de estimulação física e psicológica, não retorna ao seu estado flácido. Desta palavra, ainda que no seu comum significado obscena, fazem menção graves autores e, entre outros, Prudêncio1, São Jerónimo2 e Santo Isidoro de Sevilha (Etymologiae, Livro 8, cap. II). Segundo a fábula, era Priapo, deus da fertilidade na mitologia grega, dotado de uma virilidade exageradamente grande e que permanecia sempre erecta. Era adorado em Lâmpsaco3, onde se acreditava que Afrodite, fecundada por Dionísio e estando nessa cidade com as dores de parto, aí lhe aparecera a sua arqui-inimiga Hera que, sob pretexto de lhe acudir, mas apenas levada pelo ciúme suscitado por ter sido duplamente preterida a favor da parturiente (primeiro, em certo concurso de beleza4e agora nos favores do neto de Harmonia e Cadmo), lhe socara o ventre com mão maléfica, fazendo-lhe nascer um filho disforme, principalmente nas partes genitais5. Ainda conforme a lenda, Afrodite, envergonhada do seu parto, para evitar o sarcasmo dos demais deuses e deusas, abandonou Priapo nas montanhas circundantes, onde foi recolhido e criado por pastores – o que explica a sua característica rústica. Todavia, ao entrar na idade adulta, o deus fálico descia com frequência à urbe onde a sua presença, pelos escândalos da sua nímia potência, causava grande alvoroço, levando o Senado da cidade a decidir-se pela sua expulsão “propter virilis membri magnitudinem”. Porém, por causa de um surto de esterilidade que, logo após a partida de Priapo, atingiu a generalidade dos gentios da região, os próprios cidadãos de Lâmpsaco convidaram-no a regressar e resolveram dedicar-lhe templos e sacrifícios e até honrá-lo com festas instituídas em seu nome, que designavam por Priapeias, no decurso das quais eram muito admiradas as façanhas priapescas praticadas por todos quantos, no auge das festividades, eram possuídos pelo furor priápico. Foi também devido à sua eterna erecção que o declararam deus dos jardins, porque nos pomares e nas hortas, aonde sempre há que colher, particularmente ostenta a Natureza a sua fecundidade. Assim, quando os Antigos imploravam a Priapo, pediam a fertilidade da terra e a geração e propagação das plantas e animais. Por esta mesma razão o reconheceram como deus das aves e dos ladrões, entendendo que tinha poder para deles livrar os campos e pomares. Priapo era, pois, um símbolo da fecundidade, e nessa condição participava no cortejo de Dionísio, na companhia dos Sátiros, aos quais se assemelhava, e de Sileno e do seu asno (com o qual, naturalmente, rivalizava). A este propósito, conta Ovídeo nos Fastos, que por ocasião de um grande banquete oferecido por Dionísio a todos os personagens do Olimpo, deuses, sátiros e ninfas incluídos, julgou Priapo vislumbrar num olhar da ninfa Lotis uma promessa de amor. Quando, derrotada pelo cansaço e pela embriaguez, a jovem virgem adormeceu, Priapo acercou-se, sorrateiro, aproveitando a oportunidade para tentar violá-la. Contudo, no preciso momento em que se preparava para culminar o seu intento, um dos burros de Sileno despertou a ninfa com sonoros zurros. Lotis, libertando-se do amplexo do ardente pretendente, fugiu para um bosque próximo onde se metamorfoseou numa árvore a que daria o seu nome: o lótus. É Virgílio, o poeta latino, quem, nas Geórgicas, nos conta o final da história: Priapo, furioso por ver gorados os seus desígnios, matou o asno; mas logo arrependido da crueldade do acto cometido, obteve de Dionísio que colocasse o animal no Céu, sob a forma de constelação. Apesar de ser mal antiquíssimo e flagelar um significativo número de indivíduos, o priapismo apenas surge como palavra no idioma português em 1836, no Novo dicionário crítico e etimológico da língua portuguesa de Francisco Solano Constâncio, derivado do substantivo masculino priapo (pénis erecto, falo) introduzido pelo padre Rafael Bluteau no Vocabulário português e latino […], publicado em 1720.r
Citações:
“Eis porque figurando o falo no culto priápico dos imperadores, igualmente o vemos entre os signos da arte sepulcral.”; Natália Correia in “Não Percas a Rosa”, página 108; Edições D. Quixote.
“Celebravam-no os amigos como possuído dum priapismo invencivelmente inflexo e abraâmico, praticado a esmo nas criadas e mulheres do povo…”; Aquilino Ribeiro in “Quando os Lobos Uivam”, IX, página 288; Bertrand Editora, 8ª edição.
“O pobre tabético abrasava nos furores de um priapismo insaciável.”; Abel Botelho in “Barão de Lavos”, cap. 15, pág. 437.
“O final… parece dever situar-se na categoria das façanhas priapescas.”; Aquilino Ribeiro in “Camões, Camilo, Eça…”, pág. 78.
“Mas havia regras respeitáveis no ritmo da comezaina: para os machos, as tripas cozidas; para as fêmeas, o caldo de substância e o príapo miserando…”; Vitorino Nemésio in “O Campo de São Paulo; A Cº de Jesus e o Plano Português do Brasil”, 4ª parte, cap. XXXII, pág. 319; SEIT – Editorial Panorama, 1971.
Notas:
1 Aurélio Prudêncio Clemente, nascido em Espanha em 348 d.C., foi o primeiro poeta cristão. Autor de hinos e de peças escritas em linguagem rude, mas com um estilo cheio de imagens e de entusiasmo, de que chegaram até aos nossos tempos o Cathemerinon e o Peristhephanon. Um dos seus hinos, Salvete, Flores Martyrum, figura no breviário romano.
2 Epístola aos Egípcios.
3 Antigo nome do porto de Dardanelos, situado no Mar da Mármara (Turquia).
4 Ver o texto “Harmonia”, publicado no Jornal de Monchique de 31 de Janeiro de 2016.
5 Posteriormente, Hera escolheu Priapo para ser o perceptor do seu filho Ares. O deus fálico exercitou o menino para ser um exímio dançarino e só depois o instruiu para ser guerreiro. Ares, ainda adolescente, ensinado por Priapo também na arte da sedução, viria a ser o mais fogoso amante de Afrodite: a vingança estava consumada!
(Texto escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico)