Portugal a lápis de cor, estudar a pós-colonialidade
A historiografia pós-colonial tem a enorme vantagem de dispor hoje de um naipe de historiadores capazes de repensar os efeitos do colonialismo português sem ressaibos ou recalcamentos ou até mesmo vinganças ideológicas. “Portugal a Lápis de Cor, A Sul de uma pós-colonialidade”, por Sheila Khan, Almedina, 2015, é um trabalho de grande qualidade. Como escreve a autora, doutorada em estudos étnicos e culturais, este seu trabalho centra-se no tempo atual da pós-colonialidade portuguesa partindo de uma reunião polifónica com as gentes do ‘Sul’, com investigadores, pensadores, escritores, jornalistas e investigadores portugueses num ‘frente a frente’ reflexivo sobre os seguintes tópicos: as narrativas de vida e de identidade no tempo colonial; o encontro entre a realidade humana da experiência ultramarina e a realidade da metrópole sociocultural, política e económica do pós-25 de Abril; a consciência histórica de Portugal mediante as suas outras gentes e o modo como Portugal se tem representado a si mesmo. Trata-se de fazer sociologia pós-colonial das ausências.
O estudioso impressiona-se quanto ao modo como quase um país inteiro fechou as portas ao império e entrou alegremente na União Europeia. No entanto, há um discurso desta nação outrora imperial e colonizadora que, se bem que esvanecido, é omnipresente na relação com gente vinda de outras parcelas do que foi o império, gente que desembarcou como consequência direta das guerras coloniais e da libertação dos territórios colonizados. Isto também para sublinhar que há várias gentes do ‘Sul’ que pululam no território da pós-colonialidade portuguesa. À volta desta sociologia pós-colonial das ausências, a estudiosa veio trazer visibilidade, reconhecimento às manifestações de protagonistas que se foram instalando com maior ou menor discrição pelo país fora, mas que guarda memória, mesmo reminiscentes. Como procede, então? A autora responde: “Olhar os vários ângulos, perspetivas, registos desta pós-colonialidade de expressão portuguesa, analisando, por um lado, as vozes e memórias daqueles que viveram a experiência colonial portuguesa com os seus processos de descolonização e, por outro lado, as perceções daqueles que investigam e pensam essa pós-colonialidade”.
Uma questão que ocorre como preliminar a este estudo é apurar o sentimento europeu dos portugueses, se se perderam as amarras ao passado que era constituído pela existência de colónias, e ajusta-se a observação do ensaísta e crítico literário Eugénio Lisboa: “Não sei quem é que costumava dizer que os portugueses desde que começaram a pensar entrar para a Europa ficaram loiros. Mas, de repente, ficaram loiros espiritual e fisicamente, como se, de repente, eles passassem a ser uns europeus que não tivessem que ver com África”. Hélder Macedo e Maria João Seixas também ironizam sobre a mestiçagem dos portugueses, recordam mesmo que no século XVI se calcula que 10 a 12% da população de Lisboa era negra, isto para concluir que somos indiferentes à nossa própria História, alheamo-nos do sangue que nos corre nas veias. E daí de certas pulsões, formas eufóricas de nos querermos ligar à Europa, com já nos entusiasma-mos pela Índia, pelo Brasil, por África. A investigadora Rosa Cabecinhas observa: “Eu acho que Portugal continua a ter aquele problema estrutural de ser, simultaneamente, centro e periferia. Nós continuamos a pensar-nos enquanto ex-centro de um grande império”. Enquanto procuramos uma nova narrativa de identidade sentimos comprazimento com uma literatura memorial sobre África com elevada carga nostálgica e que é tão mais popular quanto for politicamente inócua e se retiver nas descrições das paisagens, das alegrias da vida e do custo das separações.
Temos depois a retórica multicultural que tantas vezes não passa de folclore, há quem considere que a descolonização cultural e das mentalidades continua por fazer. É curioso observar que a narrativa pós-colonial também afeta a historiografia na medida em que os estudos historiográficos fazem muitas vezes uma cisão entre a época colonial e da independência ou quando se associam é para culpabilizar a primeira. Mas é na relação entre centro e periferia que permanece a perceção de que Portugal pós-colonial não se libertou do estatuto de colonizador, há como que um preconceito de que um indivíduo que veio das ex-colónias tem estrutura inferior.
Por último, a investigadora estuda a literatura dos ‘retornados’, é um dos pontos mais saboroso da investigação e em dado passo há uma citação do romance O Esplendor de Portugal de António Lobo Antunes pela voz e perceção de uma família de retornados: “O meu pai costumava explicar que aquilo que tínhamos vindo procurar em África não era dinheiro nem poder mas pretos sem dinheiro e sem poder algum que nos dessem a ilusão do dinheiro e do poder que de facto ainda que o tivéssemos não tínhamos por não sermos mais que tolerados, aceites com desprezo em Portugal, olhados como olhávamos os bailundos que trabalhavam para nós e portanto de certo modo erámos os pretos dos outros da mesma forma que os pretos possuíam os seus pretos […] o meu pai costumava explicar que aquilo que tínhamos procurar em África era transformar a vingança de mandar no que fingíamos ser a dignidade de mandar, morando em casas que macaqueavam casas europeias e qualquer europeu desprezaria considerando-as como considerávamos as cubatas em torno, numa idêntica repulsa e idêntico desdém”. Para Sheila Khan, pensar a pós-colonialidade tem de inevitavelmente assumir-se como um compromisso com a História de Portugal, não apenas como um compromisso que resultou num corte cronológico mas como uma narrativa onde deverão caber os Outros, aqueles ainda remetidos ao esquecimento e à invisibilidade sociais.