O Naufrágio
“barcos naufragados procuram a praia de cada ser humano”
Tomas Transtroner
(Prémio Nobel da Literatura 2011)
Barco. Praia. Homem. O naufrágio. A miragem da praia. O abraço do homem. O barco desmantelado. A esperança afogada. A praia agonizante, coberta e desfigurada pela maré negra. Sem luz. Irreconhecível. E o Homem, para se salvar dos destroços, do caos, terá que recorrer à mitologia e tornar-se um novo Neptuno para caminhar sobre as águas, um novo Mercúrio a quem, para voar sobre a terra, pedirá as asas que ostenta na cabeça e nos pés.
Nesta ilimitação, onde poderemos assinalar o espaço e o tempo da arca de Noé? Antes ou depois deste dilúvio de incúria, de cobiça, de ambição, de consumismo, de guerra e de morte?… De inconsciência e de maldade? Desta tormenta de tormentos que vai asfixiando a respiração e o sopro do espírito?
Como primeiro salvador, Noé abriu as portas da barca à criação. Para que os seres vivos não se extinguissem. Quarenta dias depois, passado o dilúvio, fê-los sair e pisar a Terra sob o arco-íris da confiança para que, durante não sei quantos séculos de outras quarentenas, procurassem e encontrassem “a praia de cada novo ser humano”. Para que todos os mares tivessem uma bandeira azul. Até ao fim do mundo.
Mas isso aconteceu no tempo de Noé, em que foi salvo o patriarca e toda a sua família rodeados dos restantes casais de animais merecedores da salvação, os puros, inocentes, justos e bons, íntegros e sensíveis, desde o primeiro dia.
Ruy Belo diz: “Caia mesmo uma bota cardada/ no grande reduto de deus e não conseguirá/ desvanecer a primitiva pegada.” E esta foi a primeira pegada da bota cardada do mal a não conseguir vencer o reduto divino. A marca das cardas ficou, mas a “primitiva pegada” mantém-se indelével no Homem. É ela que no nosso “ser racional” não sabemos dizer onde se esconde. É. Apenas É.
O selo do gene ficou marcado a fogo no Génesis por toda a eternidade. Quer o Homem queira quer não. Quer acredite ou não. Isso pouco importa, porque o Sinal lá está: ele É e será para sempre. Por etimologia gene é a “origem, a fonte, a proveniência” do Homem; Génesis “descreve a criação do Homem e narra a história da humanidade”. Repare-se como em Sophia de Mello Breyner, no seu poema Gesto, vibra esta intimidade: ” Eu em tudo Te vi amanhecer/ Mas nenhuma presença Te cumpriu,/ Só me ficou o gesto que subiu/ Às mais longínquas fontes do meu ser.”.
É transcendente, mas está cá dentro.
Voltei atrás. Estava um fim de tarde magnífico para seguir a pista das descobertas – os rumores, os ares, a luz, os cheiros das vielas e do rio, dos arcos, das escadinhas, dos azulejos, dos ferros forjados, das calçadas e da respiração da terra, dos recantos e encantos de Alfama: É que tinha passado por qualquer coisa que não entendera bem mas que me fizera ficar a sangrar – na parede enrugada de um prédio, escrito em grandes letras vermelhas, muito certinhas e alinhadas a viés, tornei a ler como quem ouve o alerta de uma trombeta: “PARA A VIDA SER ARTE SÓ FALTAS TU”. Ora aquilo tinha sido escrito e gritado para mim e para ti e para todos vocês também, que passamos sem ler, sem ouvir e sem ver a cor das letras, o trinar do fado dolorido das coisas, do coração que se espreme na mão até sangrar e se deita fora. E, aí, fui assaltado e golpeado pela mensagem da Arte e da Vida… e compreendi melhor a luta de Sebastião Salgado por um ideal de sobrevivência para o mundo, por uma Terra amada como obra de arte. Génesis diz tudo o que há de belo e de criado, da pegada das botas cardadas e do voo das gaivotas, dos animais e das pessoas e das plantas, deste nosso planeta que tratamos como se fosse um inimigo, (apesar dele desconhecermos 46%…). Todos somos contemporâneos de Adão, todos fomos criados quando ele foi, o nosso gene é o mesmo e é a capacidade de reconhecermos isto que nos torna diferentes das outras espécies, apesar de todos sermos seres animados (com alma).
Temos que dar razão a Jorge de Sena quando, no poema O Amor não amado, diz: “não existe uma barca onde o mundo se invente, embora as pontes sejam dessas barcas”.
Claro que todas estas emoções estão expostas no Génesis. Este desejo e esta necessidade de inventar um mundo novo estão no âmago de Génesis. Para que a vida seja Vida.
Mais uma vez, e numa voz troante, Ruy Belo diz destas coisas como só ele sabe dizer: “Vieram ter comigo dos lados do mar. Eram três, eram três mil. (…) Pus-me a distribuir por eles as minhas palavras: árvore, pássaro, mar, criança, rapariga, mulher. (…) Eles ficavam incendiados. (…) Vieram mais, muitos mais dos lados do mar. Disse-lhes: morte, Deus. E caí redondo no chão. “Foi o naufrágio. O barco desmantelado, feito destroços na areia negra da praia.
O objetivo de Sebastião Salgado é “religar o homem com o mundo do início, antes que a humanidade o transforme de vez em algo quase irreconhecível “. Religar. Tornar a ligar. Religião significa precisamente isso: tornar a ligar o homem com o transcendente, com aquele ou aquilo em que acredita. O crer com o Ser. E esta fabulosa e inconcebível exposição, Génesis, talvez sem o pretender, religa e funde o génio com o belo, quase o sobrenatural com o real. O pasmo com o êxtase torna-se vida e a sobrevivência uma realidade. Mas o artista (que recusa sê-lo…) alerta para o facto de “a realidade não ser a realidade”. No entanto, diz com frequência: -“Espero que a pessoa que entra para visitar a minha exposição e a pessoa que sai não seja exatamente a mesma.” Os mais de 2,5 milhões de pessoas que (antes da mostra em Lisboa, de 10 de abril a 2 de agosto) viram as 245 fotografias de Génesis (muitas delas gigantes), saíram de lá diferentes. Com uma outra visão do mundo, com um sufoco de agonia pelo “naufrágio”, com um desejo imenso de voluntariado na cruzada pela salvação do planeta Terra.
Além desse tal imenso pasmo pela beleza da realidade do irreal, sentimo-nos atordoados, bêbados da visão do SEMPRE. Perdemos a noção do agora, do antes e do depois, levitamos numa órbita fora da memória do tempo e integrados na origem de tudo, numa existência que passou e passa por aqui, mas que nunca terá fim. Esta emoção é um murro no estômago dado pela Verdade. É um sempre que nos marca para sempre.
Será que ainda iremos a tempo de recuperar o barco naufragado? De construir, tábua a tábua, uma nova arca de Noé? De inventar um novo mundo?
Sebastião Salgado, durante oito longos anos de paixão e de trabalho, firmou na consciência do homem os alicerces das pontes que unem as margens do Tempo.