O massacre português de Wiriamu: uma extraordinária investigação
Mustafah Dhada é um historiador moçambicano doutorado em Oxford e professor na Universidade da Califórnia. A historiografia da Guiné deve-lhe um importantíssimo trabalho, infelizmente nunca traduzido em língua portuguesa, Warriores at Work: How Guinea was really set free (Niwot: University of Colorado Press, 1993).
“O Massacre Português de Wiriamu, Moçambique, 1972, por Mustafah Dhada, Tinta-da-China, 2016, é uma peça da melhor filigrana dos métodos historiográficos atuais: mostrar o que é dado como consabido, pôr a nu omissões e contradições, gerar envolvimento levando os protagonistas ao local dos acontecimentos, contextualizar o que motivou o massacre e quais as suas consequências, do particular ao geral.
Na manhã de 16 de Dezembro de 1972, tropas coloniais portuguesas reuniram os habitantes da pequena aldeia de Wiriamu, perto de Tete, em Moçambique, na Praça Central e ordenaram-lhes que batessem adeus e que cantassem para se despedirem da vida. Em seguida, militares da 6ª companhia de comandos abriram fogo e lançaram granadas. Incitados pelo brado “matem-nos todos”, os militares levaram a mortandade a quatro povoações vizinhas ao longo do rio Zambeze, onde o território de Moçambique se estende para o Zimbabué (Rodésia, à data dos acontecimentos), a Zâmbia e o Malawi – uma região designada pelos missionários católicos como ‘a terra esquecida por Deus’. No final do dia, perto de 400 aldeãos tinha sido mortos e os seus corpos eram lentamente consumidos pelas chamas em piras funerárias pelos soldados com o capim que cobria as palhotas. Peter Pringle, um jornalista inglês que procurou apurar a verdade ao tempo, e que foi expulso pelas autoridades coloniais, descreve estes factos no prefácio da obra.
Quem conseguiu escapar relatou os acontecimentos aos missionários locais, a informação chegou a Espanha e ao Reino Unido. Sensivelmente meio ano mais tarde, a 10 de Julho de 1973, em vésperas da visita de Marcelo Caetano a Londres, o jornal inglês The London Times denunciava na primeira página o massacre. As autoridades portuguesas repudiaram a notícia, chegando mesmo a negar a própria existência do lugar. Seria por via deste artigo que Mustafah Dhada, então um jovem moçambicano em Londres, temeria contacto com os acontecimentos que marcariam a sua vida académica. Ao longo da sua carreira de investigador, Dhada foi publicando diversos artigos sobre esta matéria, obteve depois uma bolsa que lhe permitiu trabalho no terreno, e foi assim que ele consolidou uma investigação de décadas.
A grande surpresa, observa Peter Pringle, é que cerca de 40 anos depois do massacre, muita bruma e desconhecimento continuada a rodear a verdade daquilo que se passou, di-lo claramente: “Ao longo dos anos – em artigos, livros, revistas académicas, dois romances e um documentário, diversos autores procuraram reconstituir o que de facto aconteceu. Todavia, não tem sido fácil recompor a história de Wiriamu. Os relatos são escassos. Documentos oficiais importantes perderam-se, foram deliberadamente destruídos ou nunca existiram. Os arquivos do movimento de libertação, a FRELIMO, são incompletos. O contacto com testemunhas foi e continua a ser problemático.
O que torna este documento uma obra ímpar, de leitura obrigatória, é a metodologia e o primor da escrita, com um pendor para a reportagem (que a tem) e uma análise rigorosa no trabalho do terreno, tudo estruturado como deve ser: quem era quem na luta nacionalista e como se processava a guerra, o leitor não iniciado ficará a aperceber-se de que a história da FRELIMO incluiu rancores, assassinatos e turbulência ideológica interna; apercebemo-nos da crescente importância do Tete na evolução da guerra e como a ameaça era pressentida pelas autoridades coloniais e militares, ali se viveu, como em muitos outros confrontos, o papel dramático das autoridades locais metidas entre dois foco, como escreve Dhada: “Wiriamu e o seu régulo estavam condicionados pelos imperativos da sobrevivência e da defesa do interesse coletivo. Não lhes restava outra alternativa senão permitir o acesso da FRELIMO aos seus desfiladeiros para transporte de armas, e autorizá-las a recrutar homens na região do triângulo para ingressarem nas suas fileiras”; é relevado o papel da igreja de Tete, também ela obrigada a respeitar a autoridade portuguesa e a dar cuidados aos seus fiéis, Dhada ilustra atos de violência anteriores e outros que se seguiram a Wiriamu e qual o comportamentos dos missionários; Dhada devolve humanidade a Wiriamu, conta a sua história, mas antes, mostra-nos o que logo constou da informação e se tornou público sobre o massacre e como aos poucos as próprias autoridades portuguesas tiveram que explicar que tinha havido excessos, mas nunca dizendo quais, na Operação Marosca; são páginas muito belas as que Dhada escreve sobre o triângulo de Wiriamu, será porventura a voz do sangue que o leva a narrativa tão primorosa que mete riachos, rios e charcos e mesmo feitiçaria, como era a vida a aldeia, como este microcosmo funcionou até que tudo se extinguiu em cinzas; temos depois a anatomia do massacre, a chegada dos comandos comandados por Antonino Melo, é um texto horripilante onde até um sentimento de compaixão comparece: “Em Wiriamu, as execuções correram de forma expedita. Enquanto alguns militares incendiavam palhotas cheias de pessoas, Antonino Melo encaminhava, pessoalmente, outros habitantes para a palhota dos Tenente Valete, uma das maiores da povoação. Foi uma tarefa fácil, pois muita gente já se encontrava ali devido às festividades. Em determinado momento, Antonino Melo sentiu um puxão na perna. Baixou a cabeça e os seus olhos cruzaram-se com os dela. Uma menina com menos de dez anos agarrava-se a ele com força e recusava-se a avançar. Não conseguiu libertar-se. Melo ordenou, então, aos seus homens, que retirassem a mãe da criança do interior da palhota e disse a ambas para fugir dali. 23 anos mais tarde, ao ser informada que Antonino Melo seria entrevistado no âmbito do projeto, a menina, então uma mulher adulta, pediu que lhe fosse transmitido o seu agradecimento por lhe ter salvado a vida”.
A conclusão da obra é um monumento de síntese, por ali desfilam a lógica colonial, os constrangimentos da Igreja e os seus conflitos com o poder político e militar, a importância daquele local, o branqueamento que se pretendeu depois do massacre, o que era a vida e a identidade daquelas gentes de Wiriamu. Do lado português, permanece o silêncio. E assim termina o documento histórico: “A única resposta que oiço é o som ensurdecedor de um silêncio que me gela o sangue. De facto, diante de massacres como este, quem precisa de uma consciência?”.
É um livro magnífico, e até me apetece perdoar a Mustafah Dhada o incompreensível dislate de dizer que Amílcar Lopes Cabral era um engenheiro agrónomo natural de Cabo Verde.