O caderno do Chinicampo
Pousei as duas malas, o sol a pino. Na paragem apenas dois roedores e eu. Um pouco mais adiante, uma figueira de braços pousados na terra. Consulto o mapa, nenhum vestígio de autocarro, apenas uma onda de calor varre o asfalto.
Eu ali diante de tudo, estrada, velocidade e paragem, e tudo me parecendo completamente absurdo como no texto do ofício anterior. Perante a mudança concretizada fundei domicílio entre dois pinheiros bem no centro do povoado.
Comecei timidamente a fazer o reconhecimento do território e inaugurei o presente caderno ao segundo dia de permanência, quando a maior parte dos volumes ainda estavam por abrir. Nem vivalma, um silêncio sepulcral, só interrompido pelos latidos de um cão, ou serei eu o primeiro residente deste sítio?
O domicílio que fundei era amplo, uma espécie de cogumelo de aba larga na clareira que o afastamento das copas originava. E esse generoso domicílio fazia com que surgissem na minha cabeça os primeiros pensamentos aquosos, contribuindo para isso o charco azul ao fundo da estrada e o grasnido das gaivotas voando sobre a via poeirenta, o calor das noites de junho, o sono leve dos lacraus, as festas nocturnas de outros povoados, entravam pela janela entreaberta e reverberavam sob o tecto da minha nova morada. E de papéis fui vivendo, juntando diariamente ao texto novos parágrafos, como aliás tem sido nos tempos mais recentes.
Dos cadernos retirava todo o tipo de apontamentos, rascunhos feitos a lápis ou pequenos gatafunhos impressos em cartão canelado. Tudo me servia para tapar o corpo, nos primeiros dias de estadia, alinhava e desfazia frases que voltava a recompor à noite, depois do emprego, urdindo redes a partir de fragmentos ou arcos de palavras, procurando um espaço amplo onde ressoassem, um tecto maior que as abrigasse. Com a paciência de quem não tem sono e atravessa as noites como um farol.
Saí de casa numa quarta-feira, não era eu que saía mas uma projecção do meu corpo, caminhei sem direcção, até voltar a reentrar no mapa e naquele nome impresso sobre linhas avermelhadas, tentando não perder de todo o sentido de orientação, descobri finalmente um nome, Chinicampo, o meu destino.
O território era uma casa sem paredes, apenas um chão para verificar a frágil existência. Abandonei tudo. Comprei uma cabra e um arado, lancei sementes à terra, bebi das mornas tetas. Nos primeiros tempos dormi sob a espessura do pasto dourado, depois ergui quatro esteios de oliveira, permaneci no interior do quadrilátero por alguns meses, tentando obter do sol algumas respostas. O arco da luz foi tornando tudo mais claro na minha cabeça. Com as mãos escavei um poço. Comi livros e raízes, pequenas bagas e ergui um telhado sobre os esteios, era um avanço significativo. Abrigado da água cadente tornei-me sedentário, mas o caudal acabou por engrossar, fui arrastado pela corrente, passei inúmeros dias à deriva, lançado com violência às margens, ficaram marcas vivas dos canaviais na minha carne, profundíssimas. A terra acumulou-se nas unhas, a pele ganhou uma tonalidade baça e suja, os olhos semi-cerrados e duros, certeiros para a caça.
Cruzei-me com outros caminhantes, todos se debatendo com a circularidade dos dias, também eles ficaram prisioneiros da torrente. Encontrei um cão cor-de-laranja, tornei-o na minha companhia regular.
O charco azul é por vezes um campo lodoso, que se enche de água opaca, dissipado o azul límpido da primeira visão, é uma espessura lodosa que tolhe as narinas de torpor. E mata.
Perdi todas as noções, do tempo e dos lugares, de todas as coisas palpáveis, tornei-me um ser aéreo, sempre em trânsito, de inexistência em inexistência. Cresceu-me o cabelo como pasto áspero à flor da pele. Tornei-me impossibilidade, só verificável através das palavras do presente texto. O fogo acabou por deflagrar e cercar estas páginas.
E por vezes subo por aquela alameda e surge um homem com a sua sacola de pele, exímio manejador de facas, sobe montado numa bicla velha, coberto por um guarda-chuva a que só restam as varetas. E o Cantona da Canícula – o seu nome -, que era homem de poucas palavras, entrou por esses dias na minha vida. Reservado e trabalhador, passava os dias num cubículo, máscara espessa sobre a cara, para o proteger do constante faiscar dos eléctrodos, rodeado de montões de metal, varões ferrugentos, tampas de bidões, arames pendurados nas orelhas das paredes enegrecidas, como brincos.
Mas à hora do almoço tornava-se outro homem, despido o macaco roto, exibia os seus quase dois metros de camisa riscada, cabelo abrilhantado, gola bem puxada ao alto junto ao pescoço, gesticulava com graciosidade. Para além disso era músico versátil, acordeonista de salão, apesar da cegueira, conhecia o repertório de Piazolla e Gardel como nenhum outro.
Certo dia foi encontrado nu na oficina, barrado de uma quentura insólita, só metade do corpo esfriado e a outra metade untada de um rubor róseo. Os elementos da emergência médica avolumavam-se ao seu redor, tentando socorrê-lo. Mas ele teimava e continuava sentado num canto, afastando médicos e enfermeiros com os seus longos braços, dizendo que não suportava ser transportado em cabina fechada, só em descapotável o fariam sair dali.
O Cantona da Canícula foi o primeiro a entrar ao serviço naquele dia. Entrou no pavilhão e ainda não existia aquele cheiro de metal queimado que o enjoava, estirou o corpo no sofá e escutou as primeiras notícias no rádio e terá adormecido, o que lhe foi fatal.
A Emília, arqueóloga experimentada, ainda tentou acudir ao sucedido, estendendo-se sobre a poeira esfregou-lhe as mamas rijas nas costas, talvez Estremoz, removendo a terra ressequida em torno do corpo caído de Cantona, enquanto tocava com a ponta de um pé o afloramento de um plinto. A escavação continuava, mas a temperatura não descia, as pérolas de suor precipitavam-se como lágrimas, terra dentro de terra e mais terra por debaixo deles, o próprio ventre soterrado; era a garganta da História revelar-se, o Cantona e a Emília a colar-se à espessura do tempo.
E eu, mais uma vez saindo da cama, 7:12, mais minuto menos minuto, deixando a casa suspensa entre pinheiros, primeiro café no ponto de encontro, ou melhor dizendo, cais de embarque para os trabalhadores eventuais. A carrinha transportando os temporários saía pelas 8:20, eu a Anya, Petar, Rodrigo e Madalena, eram apenas alguns dos nomes que faziam parte dessa espera na paragem. Olhos presos aos painéis publicitários, fixos nas pedras do passeio, as mãos pousadas sobre o tampo, gestos incertos. O silvo dos travões, os veículos cansados das primeiras horas, o movimento circular da colher na chávena de café, o líquido quente percorrendo a garganta, até que uma voz irrompe e profere a chamada. Vão partir, vamos partir. Um a um os trabalhadores tomam os seus lugares na carrinha, ordeiros, malas a tiracolo, farrapos de céu nos olhos mortiços, e eu já dormindo no trajecto, de encontro aos corpos quentes dos outros, sacudido nas curvas do sonho, em direcção ao Chinicampo.
Autor: Paulo Correia