O amante ingénuo e sentimental, por John le Carré
A primeira obra que deu ampla notoriedade nacional e internacional ao britânico John le Carré foi o seu romance de espionagem “O espião que saiu do frio”. A sua consagração ao longo destas últimas décadas, e mesmo depois da queda do Muro de Berlim, em que as temáticas da guerra fria se direcionaram para sangrentos conflitos locais, terrorismo, práticas desalmadas da indústria farmacêutica, etc, é mercada por uma consistente obra do melhor recorte literário, mas são essencialmente obras de tensões entre potências em que potentados à deriva teimam em estabelecer uma nova ordem bárbara. “O Amante Ingénuo e Sentimental” é um romance totalmente fora destes contextos, não há crimes, há sim a exploração de estranhas ligações em que o herói da história, Aldo Cassidy, homem maduro e bem-sucedido nos negócios, se bem que com uma tremida vida conjugal se lança numa relação boémia com um bizarro casal: Shamus, um artista desbragado e estroina, sem problemas de gozar a boa vida á custa de outrem, e Helen, a sua esplendorosa mulher, uma sedutora por quem Aldo se sente apaixonado.
Tudo começa numa terriola de Somerset, Haverdown, onde Aldo comprou uma mansão arruinada, é aí que encontra Helen e Shamus a viver nas condições mais precárias dessa residência senhorial a precisar de obras urgentes. É um encontro de arromba, o magnata bem-sucedido com os seus carrinhos de bebé de grande procura entra no rodopio daqueles loucos boémios. Questionado pelo casal estroina, Cassidy responde com total segurança quanto ao que faz: “Faço acessórios para carrinhos de bebé, travões de pé, capotas e chassis. Estamos cotados na Bolsa, a cinquenta e oito e seis dinheiros cada ação de uma libra”. Com absoluta simplicidade, relata a sua estrada de sucesso: “Se conseguisse construir um travão que realmente segurasse, baseado no princípio da frenagem do cubo da roda, obteria apoio das instituições de segurança mais reputadas. Quando a coisa pegou, meti pessoal, expandimo-nos, crescemos e diversificámos. É uma noite de bebedeira intensa, vem depois o regresso à realidade. Helen fascina Aldo, ele sempre passou ao lado da boémia, era um fabricante de sucesso, há muitos anos que não conhecia um artista. E volta para Londres, para a família e para os negócios. É neste ponto da trama do romance que John le Carré põe Aldo a escrever ao filho mais velho, Mark, que vive desconfortavelmente num colégio interno. Estão aqui algumas das melhores páginas deste grande romancista, elas por si só aquilatam o seu profundo talento.
Não menos notável é a caraterização da atmosfera familiar em que Sandra e Aldo vivem em universos diferentes e se unem em tempos e espaços de conveniência. Helen e Shamus reaparecem em Londres. Aldo envolve-se na estroinice, dissipa dinheiro para satisfação destes boémios sem escrúpulos. Aldo vai para Paris, onde decorre uma feira onde os carrinhos de bebé têm proeminência, Shamus acompanha-o e temos farra desbragada. Aldo começa a levar uma vida dupla, cresce o entusiasmo por Helen, a ligação triangular é estrambótica, Aldo parece uma ave hipnotizada, satisfaz todos os caprichos do casal. Invocando a classificação da Michelin, considera-se um amante de duas estrelas e assume a complexidade da relação afetiva que lhe caiu do céu: “À minha esquerda, separado de mim pela mulher e por uma parede misericordiosamente insonorizada, está deitado um artista despedaçado na roda do seu génio; um homem que é uma galáxia, mas não organizada”. De novo em Londres, Shamus pede a Aldo que lhe ceda o seu chalé suíço, em Sainte-Angèle. É nessa atmosfera que Shamus forjará uma cerimónia carnavalesca de casamento entre Aldo e Helen, tudo acabará na desordem que esclarecerá o desfecho definitivo. É um romance com páginas de ironia fina, comovente e emocionante, triste, lúdico e que nos leva ao fundo da vida dos negócios bem-sucedidos onde se perdeu a alma e onde os personagens ficam a jeito de se transformarem na sua própria caricatura.
Mais um John le Carré de leitura obrigatória.
Autor: Beja Santos