No estúdio Bongard esculpe-se a arte de saber viver de mãos dadas com a natureza
Por Nina Muschketat
Tara e Sylvain Bongard fazem esculturas em grés cerâmico e propõem às pessoas uma escapadela “do stress quotidiano” na sua galeria em Monchique, que abriram há dois anos.
Primeiro entranha-se as esculturas de cerâmica que se encontram espalhadas pelo espaço. Gradualmente, vão chegando aos olhos os detalhes decorativos, como os móveis antigos ou as velas acesas. Por fim, estranha-se ouvir água a correr o tempo todo considerando que se está entre quatro paredes, mas depressa se descobre a sua origem: são fontes artificiais que espelham a ligação à natureza que tanto se preza na galeria de Sylvain e Tara Bongard, em Monchique.
“A ideia é que as pessoas entrem numa salinha pequenina e aconchegante, depois quando sobem aqui para cima já encontram uma coisa mais ampla”, passando a haver “um bocadinho o efeito do uau”, explica Sylvain, que nos recebe à porta. Sejam as peças peixes, mamíferos, alfaces, laranjas, bijuteria, pão com manteiga ou flores, o laço com a natureza é omnipresente em todas elas.
“Estamos um bocadinho desligados do lado humano e ligadíssimos com o lado natural”, sublinha o artista que, embora tenha raízes suíças, veio viver para o Carvoeiro com os pais em 1970, tinha ele 11 anos. A sua mulher Tara, por ter origens anglo-portuguesas, também estabeleceu um contacto com Portugal desde cedo.
Este elo com o meio ambiente fica mais claro ainda quando se sai em direção ao jardim, onde estão expostas várias esculturas do casal. Aqui há outras fontes de água a correr, uma vegetação que levou três anos a crescer e pavões e cágados a andar por entre as peças de arte. Em breve será também inaugurada uma estufa tropical com orquídeas, camélias e vegetação tropical, conta Sylvain, enquanto atravessa por uma “porta antiga do Afeganistão” colocada no jardim como elemento de decoração.
Embora as esculturas sejam as protagonistas, assim as pessoas “podem ver também decoração, arquitetura, jardinagem”, nunca se saturando de “descobrir sempre novidades”, nota o escultor. O objetivo da galeria vai muito além de apresentar e vender arte: “É para as pessoas se encantarem um bocado com uma atmosfera diferente, tentar sair do ritual, do telemóvel, da lengalenga do dia-a-dia, do stress quotidiano”. Há quem fique a passear no jardim por uma hora ou mais.
Apesar de terem aberto o espaço com vista a receber visitantes, a forma como o montaram também foi pensado para eles próprios. “Estamos aqui horas a fio” a trabalhar no atelier, que se localiza ao pé do jardim, descreve Sylvain, pelo que poder olhar para todas “as maravilhas” espalhadas em seu redor torna a sua vida “muito mais simpática”.
“Tudo moldado à mão livre”
“Aqui é o atelier, onde a gente fabrica tudo”. Em cima das duas mesas de trabalho vêem-se peças a secar. Enquanto as mais pequenas precisam de dez dias, em alguns casos demora dois meses até que possam ser pintadas com um vidrado e depois cozidas. “A 1300 graus”, mais 300 do que na cerâmica normal, sublinha Sylvain, explicando que tal só é possível porque trabalham com grés cerâmico, que é feito a partir de uma mistura de argila com produtos naturais, como cinza de madeira, terra de jardim e areia de praia.
São poucos os escultures que usam esta técnica por implicar “mais esforço” e uma maior “despesa de energia”, além de que há o risco de quebra, de explosão ou até mesmo do derretimento completo. “Aconteceu-me uma vez e quando abri o forno pensei que me tinham roubado as peças todas”, brinca o artista.
Se tudo correr conforme planeado, no final o que se obtém são peças de escultura únicas, uma vez que é praticamente “tudo moldado à mão livre”, sem “moldes nem roda”. A única ajuda que têm é o jazz ou o blues que às vezes põem a dar no gira-discos.
Uma vez estabelecido o seu preço de venda, que vai dos 15 aos milhares de euros, as peças saem recambiadas do atelier para o jardim, para a galeria interior ou então para exposições fora de portas, sendo algumas ainda enviadas por correio para clientes estrangeiros, numa “caixa em madeira” personalizada.
De momento, têm esculturas expostas nas fontes da praça central da vila de Monchique e no farol de Sagres, assim como uma representação permanente na entrada do Museu do Azulejo, onde fizeram uma exposição em 2014. Para depois do verão está prevista uma exibição no Jardim Botânico, em Lisboa, que promete uma boa divulgação das suas obras.
De Ferragudo para Monchique, uma terra “topo de gama”
Ainda que se dedique à arte há mais de 30 anos, só há cerca de 15 anos é que Sylvain começou a trabalhar com grés cerâmico. Iniciou-se nos painéis em azulejo, tendo depois ainda passado pelo barro normal. A sua mulher Tara, que “sempre teve jeito para a arte”, desenhava e fazia vitro-fusão, mas também quis entrar “na pedalada” do grés cerâmico. Na altura ainda tinham o seu estúdio em Ferragudo, que foi aberto em 1998.
Encantados com a qualidade de vida de Monchique – uma região “topo de gama”, onde está “verde o ano todo”, existe boa água e não há turismo em massa, como descreve Sylvain —, há oito anos decidiram mudar-se para esta vila. E, seis anos depois, assim que chegaram à conclusão de que a zona “tinha excelentes oportunidades para se fazer uma coisa mesmo espetacular”, optaram por adquirir um terreno onde pudessem viver e abrir também um estúdio.
Uma vez construída a casa onde vivem atualmente, aproveitaram os confinamentos pandémicos para ir montando a galeria e desenvolver o terreno, que se assemelhava a uma “tela branca”. “Plantei canteiros, fiz uns laguinhos, umas casotas, umas estruturas para poder dispor as estátuas todas”, recorda Sylvain. “Presos” no terreno por causa da covid-19, finalizaram as obras muito mais cedo do que planeavam inicialmente e decidiram abrir portas em junho de 2020, fechando de vez o estúdio em Ferragudo.
Mesmo sendo em plena pandemia, a mudança foi um sucesso. Registaram logo mais visitas e vendas, uma vez que, explica o artista, enquanto em Ferragudo a clientela dirigia-se mais às praias e para a vida noturna, quem se desloca a Monchique geralmente procura a natureza e “o Portugal mais verdadeiro”.
Até agora têm recebido por volta de 5 mil pessoas por ano, segundo estimam os artistas, tanto que, mesmo nos meses que correm e que costumam ser “mais calmos”, continuam a ter visitas todos os dias. Muitas são de residentes da vila, mas mesmo assim “ainda falta muita gente [de lá] vir ver”, nota Sylvain.
“Há tanta coisa para ser vista no mundo”
A galeria está aberta de terça a domingo, entre as 10h00 e as 17h00, sendo que no verão o horário de abertura se estende até às 18h30. Quando a campainha soa, Tara e Sylvain suspendem o seu trabalho e descem do atelier para receber as pessoas e pô-las “à vontade”. Ou seja, estão sempre a interromper o seu momento criativo, mas, na verdade, “a gente quer é também ser interrompidos”, observa Sylvain.
Por vezes, acontece que continuam a trabalhar na sua arte depois de fecharem. Mas se for para descansar, de vez em quando Sylvain troca o grés cerâmico pelo pincel. Pintar em tela “é muito mais imediato e mais fácil do que a escultura”, justifica, e assim acaba por não ficar “à frente da televisão” o resto do tempo.
Mas não é só a arte que o fascina, são também “os animais, a culinária, a arquitetura, viajar, crianças…”, enumera Sylvain, admitindo que acaba por “diversificar ao máximo [as suas atividades]”. Faz isto “sem querer”, observa, mas para isso basta “abrir os olhos, largar o telemóvel, sair para a rua, dar uns grandes passeios e ver bem o que está à nossa volta”. Isto porque “o mundo é lindíssimo” e “há tanta coisa para ser vista”.
É por isso que Sylvain e Tara se foram virando cada vez mais para a natureza, quer através da sua arte, quer metendo as mãos verdadeiramente na terra. Têm uma propriedade com mais de 20 espécies de legumes plantados e várias árvores de fruto, como abacates, anonas e goiabas. De março a outubro, pelo menos 50% do que põem na mesa vem da sua horta.
Além disso, têm ainda galinhas e um pequeno rebanho de cabras “que acabaram de ter seis bebés”, que lhes dão tanto leite como carne. Apesar de não poderem ir pastar com elas todos os dias, porque por agora a sua vida ainda “é outra”, Sylvain diz que as tratam muito bem até ao dia em que tratam algumas “muito mal”. Assim sempre sabem “de onde ela [a carne] vem”, defende.
No fundo, seja através das suas esculturas ou da forma como vivem, o casal Bongard procura escapar “às coisas muito humanas, muito ocas”, como “os Maseratis e os Ferraris, o Benfica ou o Sporting ou o PS e o PSD”, e concentrar-se naquilo que pensam ser o que verdadeiramente interessa: a natureza e saber apreciar a vida e o mundo como se de uma peça de arte se tratassem.