Narciso VIII
O senhor Narciso apontou solenemente para o quadro do Van Gogh entre as janelas. Emoldurada numa grade talhada a ouro, sob um céu de verde inusitado, cintilante e impressionante, com a cidade de Arles ao fundo, surgia um comboio parado na estação de caminhos-de-ferro. As duas carruagens de madeira no primeiro plano parecem agitadas. A turva definição dos limites das suas formas e volumes, provocava uma sensação de calor emanado. Entre as composições na via férrea e o olhar havia uma estrada batida pelo ocre e pelo pó que se afunilava até encontrar um ponto de fuga nos contornos diluídos dos edifícios.
— Estás a ver? — indagou.
— Sim —Respondi.
— O quê?
— O quadro.
— Qual quadro? Eu não vejo quadro nenhum. É preciso ver depois do quadro. É preciso ver depois do imediato, é preciso ver para além da realidade. A arte é um microscópio para os sonhos e um par de binóculos para o futuro — concretizou.
— Sim — disse eu, encaixando. Não sabia o que dizer mais, a não ser fingir acomnpanhar tanta eloquência, à espera que o senhor Narciso prosseguisse a divagação.
— Imagina que saíste, horas antes, de um outro comboio, naquela mesma estação. Sais dali e vais até à cidade, dar um passeio. Afinal, não tens outro propósito naquela visita senão o de cirandar por ali, visitar monumentos, encher os olhos da paisagem, da beleza das mulheres nas ruas, dos jardins públicos ou da arte nos museus. É o que fazes. O dia está ventoso, como um carro em movimento. E como o vento, metes-te em todo o lado, a tua curiosidade destapa tudo o que há para ver na cidade, até dares por ti novamente junto à estação, esmagando o saibro com o peso dos teus passos sobre essa estrada. De repente, transportado por uma rajada há um chapéu que voa e cai sobre os teus pés. Caramba! Grande sorte. É um chapéu igualzinho a um que sempre quiseste ter, mas que nunca encontraste à venda ou que nunca tiveste o dinheiro suficiente para comprar. Que sorte tens, meu jovem delfim, exclamas a ti mesmo. E é verdade. Enfias o chapéu na cabeça. 58. É a tua medida. Que sorte, que vaca, que leita! Embora não tenhas tido ainda oportunidade de te veres ao espelho, sentes-te confiante. Com não?! Aquele adereço de feltro dá-te uma sensação de nuvens sobre a cabeça. Podes cabecear o céu. Pareces um escritor. Um intelectual a sério. Que pose! Então, de repente, ouves o silvar metálico, entra-te pelos ouvidos e fica a vibrar em ti depois do silêncio, apercebes-te de que o comboio à tua frente vai partir. Tens poucos segundos. Há movimento. O espaço de tempo entre as contrações do vapor diminui. Não sabes para onde te vai levar aquele comboio, mas, mesmo assim, corres para o apanhar. Só tens de levar aquele chapéu contigo para não teres medo de nada. Começas a correr, afundas o chapéu no crânio com uma mão, enquanto alargas a passada, até que apanhas o comboio em andamento.
Depois, como que afogado no próprio entusiasmo, gastando as últimas reservas de ar nos pulmões, concluiu e disse, num último fôlego improvisado:
— Um homem, quando tem um livro todo metido na cabeça, como um chapéu, e corre contra o vento, não pode perder o comboio da literatura.
Era difícil acreditar naquilo. Mantive-me uns segundos num silêncio pensativo. Depois falei:
— Quer dizer que o senhor Narciso tem um livro escrito na cabeça. Falta-lhe apenas vertê-lo para cima das folhas de papel. Se bem entendi, é isto.
— É tal e qual como diz o meu jovem delfim. E é por isso que preciso que continues a fazer o teu trabalho, é fundamental que não detenhas o ímpeto às tuas leituras — disse, ao mesmo tempo que as dezenas de músculos na cara se contraiam até fazerem o pino, num exercício acrobático e gracioso a que se pode dar o nome de sorriso.
A minha curiosidade cresceu ainda mais. Tinha sido contagiado pela excitação do senhor Narciso. Num arroubo de atrevimento, levado pela crista da onda que acabava de apanhar, resolvi explorar um pouco mais a ideia.
— Se me permite, senhor Narciso, qual é o meu papel no meio disto tudo? Em que é que as minhas leituras o podem ajudar? O livro é sobre quê? Já tem algum plano, alguma ideia assente…
— Calma, calma, calma, meu jovem delfim. O povo é sereno! Uma coisa de cada vez. Se me permitires, explico tudo detalhadamente — interrompeu.
(Continua)