Narciso V
Tudo se passou como se passou. Agora, não vale a pena tentar contrariar. Não adianta fingir que é mentira. É escusado, porque não é restituindo à estátua a pedra que lhe foi retirada que se consegue chegar ao filão que lhe deu origem. Porém, mesmo assim, conto esta história, cheia de rugas, cheia de imperfeições e de veios quebradiços, na esperança de manter qualquer coisa de original e puro e impermeável como mármore da imagem de herói clássico que me vem à superfície do pensamento sempre que me lembro do senhor Narciso.
Durante muito tempo, acreditei, como acredita um cego apaixonado não correspondido, que as horas e horas a fio fechado ora na biblioteca, ora no escritório do senhor Narciso resultavam da justa consequência do meu castigo. Esse tempo permanece entre nós, entre mim e o senhor Narciso, embora lamente cada vez mais não ter feito tudo o que me era possível para o agarrar. Sobretudo depois daquele dia em que o senhor Narciso, depois de durante muito tempo sem abrir o jogo, isolado numa carapaça de recolhimento a escrever e a rasgar manuscritos, a ler e a fechar silenciosamente a boca em bocejos de livros de enfadar, me chamou à sua presença e, de olhar encouraçado, quase inacessível, falou-me ensombradamente.
Lembro-me bem desse dia. A sério. Tinha sido um dia conturbado. Antes de me chamar, o senhor Narciso tinha estado a discutir com a mulher. Atravessando paredes de esponja, os gritos em brasa chegavam abafados até mim, sem que, contudo, percebesse muito mais do que as referências ao meu nome e “ao projeto maluco que fazia de mim cobaia.”
– Meu jovem delfim, o que achas que estás aqui a fazer? – disse-me, enquanto os dedos de madeira tamborilavam a mesa.
– Não percebo… Aqui? Na sua casa? Desde há pouco, quando cheguei, ou desde que aqui entrei pela primeira vez?
– A última.
– Desde a última vez que entrei?
– Não, meu jovem delfim, desde que entraste pela primeira vez. Em todo o caso, é igual.
O motivo que te fez entrar aqui pela primeira vez é o mesmo que te moveu a bater à porta agora, ou não?
Não quis admitir que as leituras me tinham conquistado. Não dei o flanco em relação à Luísa. Era o pai dela. Não queria deitar tudo a perder. É certo que as minhas tarefas na mesma casa que ela nos aproximavam fisicamente, mas não posso deixar de admitir que, muitas vezes, a não ser nos espaços entre leituras, nos cruzávamos fugazmente à entrada e à saída de casa ou então no túnel de gelo do corredor. Por isso, não era apenas a Luísa. Não podia ser só ela. Era mais. Era a transcendência que o mundo fantástico da literatura me oferecia depois de durante muito tempo a ter procurado nas margens da realidade soletradas pela rua. Era o Júlio Verne numa viagem ao centro de mim. Era o eu mais profundo a vir a tona depois de vinte mil léguas submarinas.
– Estou aqui para cumprir o meu castigo, senhor Narciso. Sei bem dos caminhos que andava a pisar. Passeava no risco. Eu sei. O meu chão era de ervas daninhas, armadilhas, campo minado, bosta de vaca… Eu sei – disse eu, a tentar convencer-nos de que o corretivo que me havia sido imposto estava a resultar.
– Há quanto foi isso? Há quanto tempo te forcei a isto?
– Não faço ideia, senhor Narciso. Não faço a mais atómica ideia. A felicidade pode servir para destruir as medidas vazias que enchemos de tempo. O tempo passado aqui é cego às evidências dos relógios, surdo aos gritos do calendário, mudo aos imperativos da memória. Anda tudo muito depressa, porque é bom. Eu sei. Vejo as leituras que o senhor Narciso me tem recomendado nas transformações no meu corpo, nos arames que irradiam nas extremidades do queixo, no bigode, na comichão incontrolável que sinto atrás da braguilha. Não peso o tempo, a não ser pelo tempo que os livros se demoram dentro de mim. Sei disso. Crescer. Envelhecer. Ter cabelos de nuvens ou as rugas do chão decalcadas na pele. Sei disso. O crescimento e a velhice acelerados, esse é o preço a pegar por querer que o fim-de-semana chegue depressa, que o fim da escola chegue depressa, que os feriados cheguem a correr: tudo porque concentro a ansiedade na biblioteca que o senhor me deu a devorar… (E porque não paro de pensar na sua linda filha linda, que me despreza como a um cardo, como os livros que ainda não li me desprezam, mas que um dia, folha a folha, lambendo os dedos no virar de cada página, como quem os beija, hei-de conquistar. Foi isto que pensei e não disse. Mas devia ter dito. Não disse. Não disse e pronto.)
O senhor Narciso experimentou um triste consolo que nunca lhe tinha visto. Uma alegria ensombrada que não colava à imagem que dele fazia. Disse:
– Isto foi uma parvoíce. Mas fico feliz por te ter tirado da rua. É óbvio que não foi só os vidros que partiste. Sabes bem as porcarias que andavas a experimentar… Eu também sabia. Sempre soube. Via-te aí, com os teus amigos. Sempre soube. Mas os teus pais não.
Belos amigos, hein?!
– … – Eu não disse nada. O senhor Narciso viu o meu silêncio de porta aberta e atravessou-o:
– Andamos nisto há seis meses. É tempo mais do que suficiente para cumprir pena por tão minúsculo delito, não achas? Olha, se quiseres, podes ir à tua vida. A minha biblioteca continuará ao teu dispor, claro. Mas já não precisas de cá vir a cada hora livre.
Vive a tua vida. Dá os meus cumprimentos aos teus pais. E aos teus amigos.
Foi então que pedi ao senhor Narciso que mantivéssemos a mesma disciplina. Não me importava. Mais: não suportava a ideia de voltar a conviver com as más companhias de outrora. Não tolerava o facto de poder vir a perder a proximidade ao ar de erudição que a Luísa respirava. (Esta parte, também não lhe disse, claro).
– Esquece! Isto tudo foi uma ideia pateta que eu tive.
– Ideia?! – reclamei, surpreendido.
– Ideia, sim, meu jovem delfim.
– Ideia?!
– Ideia.
– Mas qual ideia?! Explique lá isso melhor, se faz favor.
O senhor Narciso espreitou pela janela e viu o olhar da Lua a querer entrar pelos vidros.
Pareceu-me esgotado e tenso, com os nervos em corda de guitarra prestes a partir.
– Vem cá amanhã. À hora de sempre. Explico-te tudo como deve ser. Depois, tu, meu jovem delfim, decides se queres contribuir para o próximo grande clássico da literatura universal.
– O quê?! Clássico?! Que raio de história é essa?!
O olhar do senhor Narciso recuperou um pouco do brilho de pétalas. Havia nos seus gestos uma ressurreição de primavera. Regressou à velha pose de fanfarrão de antigamente e sentenciou:
– Desaparece! Até amanhã, à hora do costume, meu jovem delfim.