NARCISO III
Quando o castigo que haveria de transformar para sempre o adolescente irreverente, cheio de pulsões por domesticar num jovem educado e sensível, o senhor Narciso não tinha ainda a cara de polvo com que a doença impiedosamente o mascarara. Não tinha ainda os problemas de pigmentação na pele que a deixavam com os padrões irregulares dos camuflados da tropa, não tinha ainda aqueles grandes olhos de molusco no centro de uma cara flácida, de bochechas descaídas, como se faltasse ao rosto a definição sólida e confiante que outrora reconhecera nos alicerces nodosos das suas feições caveirentas.
Lembro-me bem, agora que o escrevo, como se respirasse essa imagem, da pose ereta e confiante, quase altiva, do senhor Narciso nos dias que se dissolveram na rotina das semanas e, depois, na estacionariedade dos meses, enquanto cumpria a minha pena. É-me difícil, se não impossível, dizer com rigor quanto tempo durou, pela simples razão de que, por minha livre iniciativa, vencido o prazo da sentença, decidi prolongar o horizonte temporal do castigo para um tempo muito maior do que aquele que havia sido determinado pelo meu pai, depois de uma sova que ainda agora me abrasa as orelhas e da consequente conversa envergonhada, mas sincera, que, na minha presença, ele mantivera com o senhor Narciso.
Na verdade, julgo que a sanção que me foi aplicado tomou apenas em linha de conta os tristes episódios com a bola e não a severidade exemplar que outros dos meus atos obscuros — alguma vizinhança chamá-los-ia de “atrozes” ou “infames” —, justificaria. A falta de jeito quase propositada para o futebol terá sido mesmo o menos grave de um conjunto repetido e frequente de rixas, tropelias, brincadeiras de mau gosto e pequenos delitos que me colocaram nas bocas do bairro e nos lugares marginais da quase delinquência juvenil. Para meu próprio bem, para que a empatia que cobiço na redação destas linhas não seja colocada em causa e para que o sentimento de culpa não me cubra de nojo de mim próprio, passo por eles ao de leve, apenas pela rama, do mesmo modo que o esquecimento passa por cima de certos factos que mudaram o sentido da História. Não minto: hoje, tal como naqueles dias, reconheço a minha sorte.
Acontece que o castigo acordado entre o meu pai e o senhor Narciso não previa defesa ou apelação a outras instâncias que não as divinas, nas quais diga-se, por rebeldia inata, nunca acreditei. Por isso, como um estoico, ou como um contribuinte na fila das finanças, aceitei o meu destino. Apesar de uma certa resistência inicial, por ver-me privado da rua e das companhias nebulosas com que costumava preencher o meu tempo, vi na minha punição uma oportunidade.
Ter de ficar retido em casa do senhor Narciso, depois das aulas, aos fins-de-semana e nas férias, a passar a limpo textos manuscritos deixados pelo irmão, ou a fazer leituras de livros antigos, ou a catalogar revistas e jornais do século passado, significavam, à partida, uma maior proximidade face à Luísa, a filha do senhor Narciso. Dois ou três anos mais velha do que eu, era ela que, secretamente, aveludava os pelos bicudos no meu coração. Para o senhor Narciso, ter-me como monge copista privativo, prestando-lhe gratuitamente um serviço que, na perspetiva dele, seria maçador e pouco estimulante, trazia-lhe a oportunidade de colocar em ação um plano que consistia em preparar alguém para escrever o livro que há muito dizia estar escrito nas páginas coloridas da sua cabeça. Para os meus pais, aquele período de reclusão deixava antever o conforto das paisagens serenas, do pôr-do-sol ou do azul sonhado na linha entre o céu e o mar: o rapaz inconstante, incontrolável, de certo modo violento e perturbado pela mundividência urbana, tinha agora outro caminho a seguir.
Continua