De Rerum Natura

Narciso II

Quando terá sido? Ontem? Na semana passada? Em que mês, em que ano? O tempo fundiu a memória, fez das palavras do senhor Narciso um metal precioso de tal maneira incandescente, que, aos meus olhos, ainda fazem eco no pensamento com o ímpeto vigoroso do agora.

Apesar disso, há nevoeiros que a alta pressão dos factos e a minha extraordinária capacidade para os ordenar cronologicamente não dissipa. Não sei se foi neste banco onde o senhor Narciso agora se encontra e de que se apoderou há muito tempo, que lhe ouvi a primeira história. Não tenho a certeza. Não sei se foi quando eu era um craque de pés trocados a tentar driblar a minha falta de talento para o futebol entre as árvores do jardim.

Talvez não. Talvez tenha sido no café das empadas de perdiz, na rua que fica de costas para o lago dos patos. O senhor Narciso chamava-lhe o café dos pensionistas, por mor das características da clientela que maioritariamente o frequentava. Infelizmente, a rua e o café, hoje, já não existem do mesmo modo que o senhor Narciso que eu conheci deixou de ter o olhar iluminado, os traços e a pele onde residiam as mais admiráveis histórias. Hoje, a rua está cheia de lojas arrumadinhas, maquilhadas com decorações delicadas e luzinhas com brilhos de olhos, empanturradas de madeiras finas, floreadas por apontamentos rústicos de poemas gourmet e por falsificações do antigamente que as tornam todas iguais às portas do futuro.

Uma felicidade postiça. Também há os bares propícios a confusões a altas horas da madrugada, em resultado da íntima vizinhança com ginásios, clubes de artes marciais e armazéns magros de cérebros e gordos de músculos. Aí, nos dias mais agitados, ouve-se a fé dos brutos a lançar gritos de guerra enquanto move montanhas de ferro e de pneus num desamor pelo cansaço.

Se o senhor Narciso viesse à tona da clarividência que tanto me fascinou, daria à rua um novo nome. No banco do jardim ou no café dos pensionistas, tenho a certeza de que lhe chamaria a “rua da porradaria”. Isso seria quanto bastava para se tornar o núcleo da minha atenção. Foi um pormenor destes que me dissuadiu de continuar a maltratar a bola e preferir as histórias que havia no passado misterioso do senhor Narciso. Já disse que não sei, que não me lembro, que não é relevante. É impossível concretizar: tanto pode ter sido quando um remate desajeitado e com potência nuclear estilhaçou a montra do café ou quando uma réplica estouvada dessa aselhice detonou em cheio no centro da cara e partiu os óculos de sol com cor de radiografia a um dos amigos do senhor Narciso. Uma delas foi a primeira: aconteceu no verão. A que lhe seguiu, a segunda, no Natal seguinte. Uma a inauguração. A outra, a reincidência. Uma resultou em aviso. A outra em condenação. Desconheço a ordem: qual destes episódios foi perdoado? Qual destes incidentes mereceu o castigo que venho cumprindo diligentemente até aos dias de hoje como uma pele que me veste ao longo do tempo.

A consequência foi esta: o senhor Narciso agarrou-me pelo braço num gesto sem força, quase de carícia, as mãos com a leveza de uma braçadeira insuflável no mar nervoso que inundava a tremura dos meus braços. Disse-me, sério, mas sem antipatia:

– Andas a partir a loiça toda e não é por uma questão de talento nos pés, miúdo! Tens a destreza do Robocop para jogar à bola. Já é a segunda vez que acontece! Continuas com o par de sapatos trocado ou és mesmo um Maradona do avesso?

– Quem são os teus pais? -perguntou a ira do dono do café, a irritação do dono dos óculos com cor de radiografia ou, por ventura, o senhor Narciso em pessoa.

– Fulano de tal e Beltrana da Silva – respondi, com medo.

O senhor Narciso ergueu o braço, calmamente, como um polícia numa operação stop, inspirou uma serenidade que colava cacos de vidros partidos e disse, depois de respirar uma rabanada de ar fresco que ferveu de vermelho a temperatura no meu rosto:

– Conheço-os bem. Estão em casa agora, não estão? Vamos até lá os dois. – Depois, atracou-me o cachaço numa veemência indolor e tranquilizou as vítimas dos meus estragos – O pai do rapaz é meu amigo. É fulano de tal, não conhece? É assim e assado – descreveu o meu pai como se fosse uma personagem de livro, com a minúcia de quem explica um passo de uma receita culinária -, é meu amigo e boa pessoa, garanto. A gente entende-se. Não se preocupe com os prejuízos, alguém há-de assumir a responsabilidade.

E fomos os dois até à minha casa, onde não sabia muito bem que meteorologia de espírito me esperava nem da influência que teria no desenrolar do meu futuro, como se o futuro fosse o que acontece há uns dias à frente.

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