Muitas necrópoles e poucos povoados
A anterior publicação desta rubrica patrimonial foi dedicada aos monumentos funerários pré-históricos da serra de Monchique, contudo ficou por analisar o facto de se constatar uma assinalável quantidade de necrópoles e de sepulturas neste território concelhio, comparativamente com os escassos sítios de habitat (povoados) conhecidos. Com efeito, no concelho de Monchique foram identificados vários espaços funerários enquadráveis na Pré-história Recente (grosso modo entre o V milénio e o II milénio a.C.), mas também alguns atribuídos ao período romano e à Antiguidade Tardia – aproximadamente entre os séculos I e VIII d.C. –, todavia praticamente não se conhecem os lugares onde viviam os construtores desses sepulcros. Importa evidenciar, porém, que relativamente ao período islâmico a realidade é oposta, ou seja, conhecem-se alguns povoados e fortificações embora continuem por identificar os respetivos espaços sepulcrais.
Afinal onde é que habitavam as pessoas que construíram os monumentos funerários pré-históricos da serra de Monchique e que neles depositaram indivíduos da sua comunidade? É admissível que aqueles que criaram e utilizaram os monumentos funerários neste território durante a Pré-história Recente não viveriam longe desses espaços funerários. A manifesta escassez de povoados nesta região serrana pode ser explicada, por um lado, pela falta de uma investigação arqueológica sistemática, uma vez que as suas características excecionais (recursos naturais, localização espacial, etc.) decerto atraíram vários grupos humanos ao longo dos tempos – não só para sepultarem os seus entes queridos, mas também para habitarem este fértil território. Durante, sobretudo, a primeira metade do século XX procedeu-se à identificação de diversos monumentos funerários neste território concelhio (em muitos casos devido a achados fortuitos realizados no contexto de lavouras), embora na segunda metade dessa centúria assistiu-se à estagnação das investigações arqueológicas de campo – não obstante os estudos realizados que se centraram na (re)análise dos dados arqueológicos obtidos, principalmente, na década de 1940. Por outro lado, é provável que os sítios (por exemplo vales) onde viviam as comunidades que habitaram esta serra entre o V milénio e o II milénio a.C. tenham sido alterados devido a deposições de sedimentos, circunstância que impede a respetiva identificação à superfície. É também possível que os sítios de habitat, contrariamente aos monumentos sepulcrais, não possuíssem estruturas positivas construídas em materiais perenes, mas sim em materiais perecíveis e/ou incluíssem estruturas negativas (fossas, silos, etc.), cuja identificação não é possível mediante a mera realização de prospeções arqueológicas de superfície.
No que concerne aos períodos Neolítico e Calcolítico (entre meados do V e o III milénios a.C.), realça-se a assinalável quantidade de monumentos funerários existentes em redor das Caldas de Monchique, implantados sempre em posição sobranceira a este emblemático vale encaixado onde brotam “águas sagradas”. De facto, não restam dúvidas de que o local onde se situam as Caldas foi importante para as antigas comunidades que habitaram este território serrano. Atentando ao caso do povoado neolítico atribuído ao V milénio a.C. descoberto sob os vestígios islâmicos do Castelo Belinho (Portimão) – onde se detetaram estruturas em negativo correspondentes a cabanas longas construídas com recurso a postes de madeira, assim como silos, fossas funerárias, entre outras coisas –, é possível que no planalto onde se localiza a necrópole neolítica da Palmeira se situasse, também, o respetivo povoado associado às sepulturas aí identificadas. Caso idêntico poderá verificar-se na zona do Esgravatadouro, tendo em conta o vale fértil aí existente – delimitado a norte pela ascensão do afloramento sienítico da Picota e a sul por vários cerros xistosos –, a presença de linhas de água, o amplo domínio visual para sul e a existência de várias sepulturas nas elevações circundantes. No que respeita à bibliografia arqueológica, a mais antiga referência à eventual existência de um povoado na envolvência das Caldas de Monchique foi registada por Leite de Vasconcelos, em 1918, contudo o topónimo referido (Covão do Samouco) não existe nesta área, portanto continua por identificar esse suposto sítio de habitat.
Relativamente à Idade do Bronze (II milénio a.C.), tendo em conta a quantidade de sepulturas enquadráveis nesse período cronológico existentes em torno das Caldas de Monchique, é expectável que nas proximidades desse “vale sagrado” existisse, também, uma povoação coeva. Nesse sentido, é possível que o provável povoado identificado no Cerro do Castelo da Nave 2 (situado a norte do popular Cerro do Castelo da Nave com ocupação islâmica), que encerra vestígios arqueológicos aparentemente desde a Idade do Bronze até à época romana, possa estar relacionado com algumas dessas sepulturas, quiçá com a necrópole de Alcaria do Banho – a distância entre os dois sítios arqueológicos ronda 1,5 quilómetros, estão separados pela ribeira de Boina e situam-se em cerros que garantem um amplo domínio visual para sul. A presença de sepulturas em redor das Caldas de Monchique, mas também em Marmelete e na Foz do Farelo, sugere a existência de uma rede de povoamento da Idade do Bronze um pouco por todo este território concelhio. Neste âmbito, realça-se que o Cerro do Castelo de Alferce também possui uma ocupação enquadrável no II milénio a.C., todavia ainda não foi identificada uma necrópole que possa ser associada a este povoado.
Por último, importa referir o enigmático Cerro do Castanho, sítio que foi parcialmente escavado por Octávio da Veiga Ferreira e onde foram detetados vestígios de um caminho lajeado de acesso ao alto do cerro, assim como a existência de um suposto lagar romano, uma muralha e outras construções. Posteriormente, em finais da década de 1980, este sítio arqueológico foi novamente intervencionado – por uma equipa liderada pela Doutora Teresa Gamito da Universidade do Algarve – e, segundo as parcas informações disponíveis (não científicas), procedeu-se à limpeza de umas “covas” existentes próximo do topo do cerro que, supostamente, deverão corresponder a sepulturas da Idade do Ferro – a ser o caso trata-se da primeira evidência de bens culturais imóveis atribuídos ao I milénio a.C. neste território concelhio. Desconhece-se, contudo, se essas presumíveis sepulturas correspondem às hipotéticas estruturas romanas que Veiga Ferreira identificou algumas décadas antes. Considerando o exposto, será que estamos na presença de um arqueossítio com ocupações distintas (tanto tipologicamente como cronologicamente)? De qualquer modo, a presença de taludes e de alinhamentos pétreos neste cerro sugere que terá existido uma povoação, quiçá atribuída ao período romano, que, a ser o caso, poderá relacionar-se com algumas das sepulturas romanas identificadas neste território concelhio. Salienta-se, também, que existe uma referência antiga à existência de um povoado fortificado próximo da vila de Monchique, que poderá corresponder ao Cerro do Castanho… Esperemos que no futuro próximo seja possível desenvolver novas investigações arqueológicas, de preferência multidisciplinares, que permitam esclarecer as hipóteses abordadas neste texto.

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Foto de destaque: O povoado (também pré-histórico) do Cerro do Castelo de Alferce