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«Medronho Todos os Dias» entrevista a Silvia Coelho

«O destilador, mesmo em face da transformação ou da destruição da paisagem, mesmo quando arde tudo, por exemplo, resiste e mantém-se» tal como a prática do fazer medronho desde a ancestralidade. Um saber genuíno que utiliza a magia do tempo para que seja possível «entender em cada momento e a sua importância no todo».

É isto que é o «Medronho todos os dias», um filme que foi apresentado do DocLisboa da autoria de Sílvia Coelho e Paulo Raposo, e que retrata, as adegas, os destiladores, a apanha do medronho e muito mais do processo de produção de aguardente de medronho na serra de Monchique.

O filme vai ser apresentado de uma forma mais intimista no dia 10 de março na adega do Lagarto??? e no dia 11 no auditório da Escola Básica Manuel do Nascimento, para a população em geral, numa ação promovida pela Junta de Freguesia de Monchique, em parceria com a Associação Postigo.

O JM falou com Sílvia Coelho, com dois produtores de medronho e com um apreciador e consumidor, que já viram a película, para desvendar um calcezinho daquilo que é o filme.

Jornal de Monchique – Como surgiu a ideia de filmar sobre o medronho de Monchique?

Sílvia Coelho – Esta ideia surgiu em meados de 2010 quando fui ter com uns amigos a Monchique.
Conheci, na altura, algumas pessoas que me falaram sobre esta prática e a
dificuldade que muitos produtores, principalmente os mais idosos, sentiam no
processo de certificação da aguardente. Vi que a maioria utilizava um alambique
em tubo, muito particular daquela região. Quando comecei a pensar na forma
como iria filmar a colheita, este local também me pareceu ideal não só pelas
caraterísticas topográficas da serra, mas também porque os produtores estavam
organizados através da associação APAGARBE, facilitando o contacto com a
população.

JM – Tinha uma ideia pré-concebida ou o filme foi seguindo a autenticidade dos protagonistas?

SC – Ao longo das filmagens fomos intercalando entre momentos muito específicos que
queríamos aprofundar e as ligações espontâneas ou ritos que se foram revelando.
A vontade de nos focarmos em duas casas da destila foi desde cedo planeada, no
sentido em que seriam diferentes na sua traça e localização. Uma deveria ser de
taipa e incrustada na serra, a outra teria um aspeto mais moderno e com azulejos.
Os intervenientes vincaram os aspetos estruturantes da narrativa, fazendo-nos
perceber melhor o seu contexto e o seu tempo.
Ao longo das filmagens, aconteceram vários momentos inesperados, num constante
re-posicionamento da câmara. Ora se filmavam os locais já familiares, com a
repetição da destila, e que foi simultaneamente uma repetição do processo de
filmagem, enquanto técnica que também progride e se auto-avalia, ora em locais
desconhecidos, caminhos de serra por onde nos perdíamos propositadamente. Era
preciso entender cada momento e a sua importância no todo, depois foi decidir,
explorar, arriscar. Havia, no entanto, algumas transições já planeadas, a colheita, a
queimada ou o cortador por exemplo, eram ideias muito concretas porque estavam
relacionadas com a preservação e manutenção da serra. Era o processo de espera e
de expectativa que tínhamos em mente demorar-nos no processo de filmagem.

JM – O quê e quem pretende atingir com o filme?

SC – Pretendia, por um lado, retratar aquela geração, procurar uma maior proximidade com as pessoas da serra, o seu modo de vida e dificuldades. Mostrar o seu isolamento. Foi desde logo nossa intenção retratar o destilador sozinho no seu trabalho, nessa sua
relação muito própria com o mundo e o seu lugar. Partindo dessas linhas orientadoras
esperava captar essa espera, esse olhar do destilador para o seu quotidiano.

JM – Quanto tempo duraram as filmagens?

SC – Cerca de um ano. Comecei por ir várias vezes a Monchique entre
setembro e outubro de 2014, depois filmámos a destila, sem interrupções,
durante uns 15 dias, e em setembro e outubro 2015 voltámos para a colheita.

JM – Qual foi a aceitação das pessoas e qual o critério para a escolha das adegas?

SC – Foi muito positiva porque perceberam logo qual era o meu objetivo. Uma vez que os
produtores estavam sempre no mesmo local, tínhamos bastante tempo para conversar.
Foquei-me em duas adegas diferentes por estarem localizadas em zonas muito
particulares, mas o mais engraçado é que provinham todos da mesma zona. A Perna da
Negra tornou-se, assim, para mim esse real imaginado da infância com as histórias que
eles contavam. Uma das adegas queríamos que fosse mesmo escondida na serra, servia
para vincar o seu isolamento, explorando a mundividência do mestre da destila, uma
perceção idiossincrásica da geografia e da cultura envolvente. Queríamos explorar esse
movimento ancestral, repetitivo e longo.

JM – Que importância têm os sons no filme na película?

SC – Na colheita queríamos explorar um efeito de imersão, de concha acústica natural
provocado pala paisagem acidentada. Os sons dos pássaros e insetos, até das moscas,
estavam muito presentes, criavam uma sinfonia que reforçava a vitalidade da serra.
Também importante era dar a voz do destilador, evitando as explicações técnicas da
apanha e do processo. Uma certa intimidade, espero.

JM – Na contracapa do DVD diz que «este filme acompanha o saber singular do processo de produção da aguardente de medronho (…) através da voz dos destiladores». No entanto, os diálogos são, na sua maioria, sobre a atualidade… Porquê esta escolha?

SC – Como salientei antes, mais que uma reportagem, o que nos interessou foi tentar dar a ver e ouvir como a destilação é indissociável da forma dos destiladores olharem o
mundo.

JM – Que relação faz entre a ancestralidade do processo de destilação e a contemporaneidade dos diálogos, das máquinas e das normais técnicas exigidas?

SC – O processo é sempre o mesmo e talvez o discurso também, há os mesmos tipos de
inquietação. A máquina e a tecnologia vem problematizar a nossa relação com as
práticas seculares. O destilador, mesmo em face da transformação ou mesmo
destruição da paisagem, mesmo quando arde tudo, por exemplo, resiste e
mantém-se. Ele resiste, tal como o medronheiro.

JM – O que significou para si a integração do filme no DocLisboa?

SC – O DocLisboa é uma oportunidade única, enquanto maior festival de cinema
português focado no documentário, de nos encontrarmos com uma pluralidade de
visões, perspetivas e caminhos. E aprendermos a interpretar o labirinto. O Doc é
uma passagem, e não só, é uma plataforma para a possibilidade de dialogarmos
com tantas múltiplas e instáveis linguagens que o cinema (e o mundo) pode
oferecer e manifestar. E quanto mais livre seja, melhor.

SC – O próximo projeto será sobre um conjunto de sinos. Será principalmente rodado
no Ribatejo. Mas eu e o Paulo já temos ideias para outro filme que seria
parcialmente rodado em Monchique. Esperamos voltar!

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