De Rerum NaturaDestaqueOpinião

Ludovico

Crónica publicada na edição 475, de 30 de junho de 2023

Sinto-me péssimo pelos nomes que lhe chamei, pelas coisas indignas que lhe fiz. (Ou não fiz, já que não ter feito nada foi certamente a pior das dores que lhe podia ter infligido). O meu nome, agora, não interessa para nada, só interessa o Ludovico. Há muitos como eu por aí. Não quero pessoalizar, mas estando o meu propósito longe de desviar as atenções para o meu próprio ego, também não faço intenção de esvaziar a carga que me dobra a consciência desculpando-me com os outros, dividindo com eles o espaço negro desta história.  

Sigam um boi e estarão entre a manada. Percebem? Faço entender-me? Não sei se estarão a pensar se é cobardia. Aquilo que pensam pouco me importa. O mal está feito. É um nó cego. É impossível voltar atrás. No entanto, se falo de mim, é a todos os trastes, que, como eu, fizeram coisas indevidas que aludo, é aos cagarolas que preferem o silêncio aos gestos que me dirijo. Repito: não é ao boi que me refiro, é à manada. Falo por todos e cada um sabe de si. O Ludovico, onde que que esteja, sabe de si. No fim, julgarão. Tentem chegar ao fim da vossa leitura. Só isso, apenas isso, me julgará e é quanto me basta. 

A nossa vila é uma cratera de pedra no meio do verde. Os estrangeiros gostam de vir para cá, fugidos do calor confuso e salgado do Sul. Vêm pela mais movimentada das duas únicas estradas capazes de nos pôr e tirar do Mundo. A outra leva-nos à planície árida, a lugares onde só as casas ficaram, por serem demasiado velhas e pesadas para fugir. Já ninguém passa por ela, por isso, há muito que a câmara e a comissão de festas tomaram a decisão de a fechar com o palco onde atuam bandas de música vindas pela estrada do Sul. O Ludovico deve ter sido das últimas pessoas que aqui chegou transitando por essa estrada velha e rota, tão esburacada como a boca de um velho, no tempo em que ainda se acreditava que as estradas, dessem para o Norte, para o Sul, para o Oeste ou para Este, eram setas para o progresso, pontos de chegada e não uma escapatória em direção a qualquer coisa melhor. 

A nossa vila é uma cratera de pedra no meio do verde. Os estrangeiros gostam de vir para cá, fugidos do calor confuso e salgado do Sul. 

Sei bem que foi pela estrada do Norte que o Ludovico chegou e sei bem quando foi. Calma! A seu tempo também saberão porquê. Não querem esperar? Passo a explicar. No dia em que se apresentou na escola vimos aquele corpo estranho no recreio, de calças de fato-de-treino, botas de borracha até aos joelhos, camisa de flanela. Foi antes mesmo das férias do verão. Tratando-se de um corpo estranho, gerou-se uma febre entre nós, juntámo-nos todos como se fôssemos glóbulos brancos ao redor de uma infeção e começámos a atacá-lo com perguntas. O Ludovico falava pouco, mal pronunciava um verbo, trocava a ordem das sílabas nas palavras, em vez de dizer gasolina, dizia “zagolina”, por exemplo. Tinha o tique de varrer a poeira de catarro na garganta antes de dar início aos seus lacónicos discursos. Quando lhe perguntámos de onde vinha, apontou para a estrada do Norte e disse:  

─ Ladi.     

Rimo-nos. Alguém gracejou: 

─ Outro parvo! Este nem falar sabe. Vieste de onde, burro? 

O Ludovico encolheu-se um pouco, franziu a cara, dando destaque aos olhos enormes, onde as pupilas e as íris, muito pretas e indistintas, colonizavam as escleras quase inexistentes e repetiu o gesto e a indicação:  

─ Dali! 

No dia em que o Ludovico veio, os animais andavam agitados. Cães soltaram-se das correntes, morderam em pessoas sem razão aparente, urinaram postes e recantos da vila. Houve quem dissesse ter visto pastores alemães a fugir para dentro da Serra e tê-los ouvido, depois, à noite, como se fossem lobos uivando sem parar a uma lua inexistente. Os gatos assanharam-se e arranharam os colos das donas. Dias depois, os jornais noticiavam que, depois de muitos anos, havia de novo colónias de linces nestas latitudes.  

Só muito mais tarde percebi tamanha agitação. Durante muito tempo, estive preocupado em juntar-me aos outros, aos que gozavam com o Ludovico, chamando-lhe deficiente, atrasado mental, a fazer-lhe travessuras, como daquela vez em que colocámos uma pedra de calçada numa bola furada e convidámos o Ludovico a marcar um penálti. Outros foram bem mais longe, eu vi, eu estava lá. Despiram-no todo, deitaram-lhe as roupas para o lixo, escreveram-lhe nas costas, a marcador fluorescente: “picolho”. Aconteceu várias vezes. Eu não fiz nada. Nem sequer para os impedir. Uma vez, nas festas, rodearam-no de camadas de alecrim e macela e fizeram uma fogueira. Saiu de lá todo urinado. Toda a gente riu. Até os guardas.

Durante muito tempo, estive preocupado em juntar-me aos outros, aos que gozavam com o Ludovico, chamando-lhe deficiente, atrasado mental, a fazer-lhe travessuras, como daquela vez em que colocámos uma pedra de calçada numa bola furada e convidámos o Ludovico a marcar um penálti.

O Ludovico vivia com os padrinhos, uns “velhotes” da serra que se dedicavam a cuidar das casas dos estrangeiros, para que nada lhes falhasse quando viessem de férias, nem o Ludovico. Digo velhotes com aspas porque, nessa altura, teriam a idade que tenho hoje e, com quarenta anos, não me considero propriamente acabado. Digo que os padrinhos do Ludovico faziam questão de ter também o afilhado à disposição desses estrangeiros, porque se dia que esses estrangeiros faziam “coisas” ao Ludovico. Enfio a palavra coisas nas aspas, mas não explico. Vocês sabem muito bem o que quero dizer. Embora nunca tenha visto nada, só ouvi.  

Porque é que ainda não expliquei a agitação dos animais quando o Ludovico chegou? Calma. É agora. As pessoas serviam-se da condição pobre e frágil do Ludovico para lhe pedirem que tratasse das crias excedentárias de cães e de gatos que nasciam. Sei do que falo. Ajudei-o algumas vezes, quando mais ninguém estava por perto, a empurrar com o dedo indicador os cachorrinhos e gatinhos recém-nascidos que ele atirava para dentro de um balde de água até se tornarem corpos inertes.  Em troca, o Ludovico dava-me um ovo de chocolate comprado com o dinheiro do pagamento devido pelos donos dos pobres animais com a condição de lhe devolver o brinquedo que servia de brinde.  

Crescemos todos, menos o Ludovico. Queria ser bombeiro (ou “dondeiro”, como dizia), mas nunca apagou a raiva e o desprezo incandescente com que as pessoas da vila e até os estrangeiros o ateavam. Sob um manto de ingenuidade, nunca parou de arder. Um dia, mais tarde, já estava eu na faculdade, quando fazia um dos meus treinos de bicicleta ao desafio do calor que abocanhava tudo nas minhas férias de verão, vi o Ludovico especado em frente a casa de um desses estrangeiros, lá em cima, na serra, de onde sempre nos olharam. Tinha um jerricã de gasolina em cada uma das mãos. Chorava. Eram as festas da vila. Do lugar onde estávamos, via-se, lá em baixo, o grande palco a obstruir a estrada do Norte. Parei. Perguntei ao Ludovico para que queria tanta gasolina. Nessa altura, já não gozava com ele. Os remorsos tinham-me tornado numa pessoa compassiva, piedosa, mansa. 

─ Zagolina… motosserras… árvores… padrinho… cortar…  À noite, tocou sem parar a fogo. Os cães e os gatos endoideceram como da outra vez. Um halo de lume enrolado em fumo gordo contornou a vila durante dias. Foi o princípio de uma vida nova para todos nós. Também para o Ludovico. Alguém o acusou, talvez os estrangeiros. Foi preso e, depois de ser levado no jipe da guarda pela estrada do Sul, nunca mais ninguém o viu. Acredito que foi o princípio da sua liberdade. Às vezes, ouço os cães a uivar na serra e sei que ele ainda anda por aí.

Partilhar