De Rerum NaturaOpinião

Lisboa III

O outro que escreve não sou eu. As minhas memórias não contam no calendário dele. Lembra-se de mim, claro, mas não tem as recordações frescas, escreve-as sem conhecer o sabor das circunstâncias que as temperaram. É como os livros de culinária. A receita escrita não fumega, não apura a curiosidade das papilas gustativas como um refogado. O que o outro escreve sobre a minha história são sopas depois do almoço.
Ainda assim, o conhecimento que ele tem da carta chorosa é igual ao que eu tenho sobre a meteorologia, porque me é dito pelos mapas sinópticos da última página dos jornais: uma previsão. O que escreve sobre mim sabe que, ao mesmo tempo que as sacudi sem piedade para fora de mim, amarrotei a carta como a metade de uma laranja na frente da minha mãe e da minha irmã. Na certeza do meu gesto, espremi-lhes as últimas lágrimas. Limpei-as como restos de tristeza insípida nos cantos da minha boca. Eram azedas. Continuei a senti-las nas bochechas, quentes como água termal, a deslizarem para os meus lábios, a brotarem suspiros e elegias melancólicas: sumo de laracha natural.
A carta vinha de Lisboa. Mandava-me para Angola. E eu fui. A recruta deu-me a segunda oportunidade dos amantes arrependidos. Pude reconhecer a cidade que me dava o nome.
– Lisboa.
As pessoas aproximavam-se de mim e eu respondia sem um mapa de memórias para o lugar de onde vinha.
– Lisboa.
Chamavam-me e eu não devolvia a minha atenção como quem está em Cacilhas com os olhos postos no Cais do Sodré.
– Lisboa.
Toda a gente me conhecia naquela terra pequena. Acolheram-me ainda criança. Eu era os olhos da rua. Ouvia Lisboa, Lisboa, Lisboa, como quem se procura na Rua Augusta. Eu tinha o nome da distância. Respondia por ele no modo conformado de quem está longe de tudo.
Lisboa. Foi lá que pude, enfim, gozar o fim da juventude que a carta do Ministério do exército sentenciara. Conheci a Clotilde. Nela, descobri mundos e deixei-me perder por eles. Apaixonei-me. Não me esqueço do cheiro a mofo fechado da pensão, da boate Bolero, onde a conheci. Cheia de ternura, a Clotilde corrigiu-me quando apontei para o globo espelhado no cimo da pista de dança e vi tudo andar à roda. Confessei-lhe:
– Estou bêbado.
– Não és tu que estás bêbedo, meu amor, é a forma das luzes que tira os ossos às coisas.
– Estou bêbado.
Os beijos molhados, a ventosa vermelha nos lábios da Clotilde tapavam-me a boca.
Eu não resistia a tanto carinho, ao tamanho da paixão velada naquele olhar sôfrego, ao tato subterrâneo na ponta das mãos dela. Contemplava-a com o deslumbramento imóvel das grandes pinturas. Ficava cada vez mais melado. Deixava-me levar como um pingo de chuva no leito torrencial de um grande rio e mandava o garçon trazer mais uma garrafa de champanhe.
Durante o tempo em que me deixei enroscar nas pernas da Clotilde, em certas ocasiões, lembrei-me da minha mãe e da minha irmã. Disse-lhe, no fim de uma madrugada baça, com a voz nebulosa dos cigarros:
– Ias gostar de conhecê-las. São parecidas a ti.
No dia do embarque, não as vi. Esperei a Clotilde. Não apareceu. Não procurei a minha mãe e a minha irmã por entre a multidão. Sabia que não viriam, uma vez que gastara o dinheiro do bilhete delas, que seria pago por mim, num jantar romântico com a Clotilde servido por um afamado restaurante da Baixa. De uma amurada a meia-nau, fiz adeus ao máximo de figuras femininas no cais. Todas elas eram irmãs e mães de alguém a caminho da guerra. Nenhuma delas era Clotilde, aquela que me deveria esperar no fim da guerra. Envergonhei-me. Não quis que os meus camaradas reparassem no estado líquido que havia no brilho dos meus olhos. Daí que, agora, mesmo que tenham passado tantos anos, ainda mostre a mesma reação a que me vi obrigado nesse dia remoto. Passo horas de nuca inclinada, a olhar para o céu. E não é por ser um cabeça de vento. Não é por nada. É só porque arranjei esta maneira de voar. As minhas ideias são coisas muito semelhantes a pássaros. Fazem ninho na parte mais alta de mim, a que é inacessível às sombras: a minha imaginação. Felizmente, acho que o outro, o que escreve sobre mim, não sabe disto.
Como se tivesse acabado de engolir de uma só vez aqueles jovens soldados a caminho de África, a embarcação arrotou pesadamente. O convés tremeu como se fosse um formigueiro e a quilha começou a pentear a superfície marinha com lentidão, até as vozes, os choros, os gritos e os barulhos vindos de terra se afundarem no horizonte e desaparecerem por completo na crista de uma onda. Por essa altura, já as minhas recordações andavam à deriva.

(Continua)

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