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Gonçalo Viana, realizador: “Gostaria que o filme passasse a mensagem (…): é melhor celebrar a vida de quem partiu, do que chorar a sua morte”

Gonçalo Viana é natural de Monchique e vai realizar um filme sobre as gentes, as tradições e, sobretudo, o sentir de quem habita entre estas duas montanhas. Descobriu o cinema aos 11 anos e atualmente trabalha em Itália. Admite que a sua terra é “tão especial, (…) que seria um pecado realmente ir ficando cada vez mais vazia e esquecida”. Assim, “Do mesmo modo que Domingos [protagonista do filme] deve ultrapassar a morte da mulher, o medo do novo, adaptar-se à mudança, também Monchique deve inovar-se, repensar-se como vila, como património natural e cultural”.
Conta levar a película a festivais de cinema nacionais e internacionais, mas a população monchiquense, que pretende ver envolvida ativamente no projeto, vai ter oportunidade de visionar o filme numa projeção que será realizada quando o filme estiver pronto.

Jornal de Monchique – No que consiste o filme “Desgosto de Morrer no Inverno”?
Gonçalo Viana –
O filme segue Domingos, um senhor de 78 anos que acabou de perder a sua mulher e tem muitas dificuldades em aceitar esta mudança drástica na sua vida. Deste modo, agarra-se à última coisa que o liga à sua mulher: a campa onde esta será enterrada. Domingos deseja enterrar a mulher na campa da sua família, mas o seu irmão que está muito doente, prestes a morrer, seria a pessoa justa para essa campa. Domingos inicia então esta façanha contra tudo e todos, para fazer algo pela sua mulher, algo que sente que nunca fez enquanto ela era viva. No final, percebe que o que realmente interessa não é local onde será enterrado o corpo, mas sim a memória da sua mulher.

JM – Qual a razão da escolha deste título?
GV –
O título é inspirado numa frase que dizia o meu avô: “Quando morrer é no Verão, que a terra está quentinha”. Esta relação com o corpo morto, esta perceção do conforto do corpo morto é um conceito engraçado, mas ao mesmo tempo profundo e interessante.

JM – O que pretende transmitir com o filme?
GV –
A ideia para escrever esta história foi, sensivelmente, inspirada no meu avô. Quando a minha avó faleceu, ele teve um momento de reflexão sobre a vida e o seu lugar no mundo. Não sabia o que deveria fazer a partir daquele momento, o que valia a pena, perdeu um pouco a razão para continuar a fazer a vida que fazia antes. Apesar de não saber como é esta sensação de perder uma pessoa com quem se partilha mais de 60 anos da vida, eu acredito que existe sempre razão e força para viver, devemos adaptar-nos à mudança e encontrar um novo rumo, trazendo essa pessoa na nossa memória. Gostaria que o filme passasse a mensagem seguinte para os que ficam “cá”: é melhor celebrar a vida de quem partiu, do que chorar a sua morte.

JM – Como descreve a personagem Domingos?
GV –
É um senhor idoso de Monchique, muito trabalhador e de poucas palavras. Não se abre muito aos seus sentimentos, aparenta sempre ser forte. Mas, na verdade, reprime os seus verdadeiros sentimentos de amor pela sua mulher e culpa de pensar que nunca fez realmente o máximo que ela merecia.

JM – O que significa para si realizar este filme?
GV –
Desde que comecei a estudar cinema que sempre quis filmar em Monchique. Realizei um pequeno documentário com os meus avós que mostrei-lhes quando completaram anos de casamento (não me lembro bem quantos). Lembro-me que a minha avó não estava muito interessada na história, a sua atenção era direcionada apenas para como estava vestida e como aquele avental era demasiado velho. Durante uma cena que filmei em que o Vila (cão da minha irmã) observava um bolo que a minha avó tinha acabado de fazer, ela lembrou-se que tinha efetivamente um bolo no forno e levantou-se de repente exclamando: “Ai que o bolo vai-se queimar”. Durante esse documentário, a minha avó contou-me um pouco da sua história de “Romeu e Julieta” (palavras dela) com o meu avô, em que trocavam cartas num esconderijo secreto. Infelizmente, nunca consegui registar toda a história, mas através de algumas partes que ela foi-me contando, eu fui apontando e muitos desses eventos fazem parte do filme. Por isso, fazer este filme significa, tornar a realizar, fazer algo pela minha terra natal que tenho muito orgulho e fazer algo pelos meus avós, que ficarei para sempre grato por tudo o que me deram.

JM – Trata-se de um filme autobiográfico, atendendo que é inspirado no seu avô e uma das personagens é o neto, Tiago?
GV –
Não, não o considero autobiográfico. Comecei a escrever a história inspirado nesse momento delicado do meu avô, mas depois comecei sempre a afastar-me da realidade. Algumas falas e ideias vêm de coisas que diziam os meus avós, mas resolvi manter alguma distância. O próprio Domingos é muito diferente do meu avô Diamantino, que é muito mais alegre e bem disposto e bastante falador.

JM – Considera que Monchique pode assumir-se, ao mesmo tempo, como cenário e protagonista?
GV –
Sim, Monchique serve um pouco como analogia ao protagonista. Do mesmo modo que Domingos deve ultrapassar a morte da mulher, o medo do novo, adaptar-se à mudança, também Monchique deve inovar-se, repensar-se como vila, como património natural e cultural. Sinto que Monchique não tem tanto para oferecer às gerações mais jovens e estas partem para cidades maiores no litoral, deixando a população sempre mais envelhecida e estática. É uma terra tão especial, com tantos costumes e tradições riquíssimas que seria um pecado realmente ir ficando cada vez mais vazia e esquecida.

JM – Como projeta a aceitação deste tema e propriamente do filme pelos monchiquenses?
GV –
Espero que possa ter um impacto positivo e crie algum dinamismo nos monchiquenses a dois níveis. Primeiro, ao nível da história, espero que motive a manter as tradições, mas com um olhar sobre o futuro e de como podemos sempre adaptar-nos aos tempos modernos. Ao nível do projeto cultural, quero muito envolver algumas pessoas de Monchique, seja como atores, equipa técnica ou apoiantes, para que sintam orgulho na vila, sintam que Monchique tem potencial para continuar a ser um foco importante de cultura e talvez, quem sabe, este poderá ser um dos primeiros de tantos outros projetos culturais que colocam a vila e as suas pessoas no centro. Penso que iniciativas como “Lavrar o Mar” e o VilaPalco são ótimos exemplos desta vontade.

JM – Onde pretende mostrar o filme?
GV –
O filme circulará em primeiro lugar por alguns festivais portugueses e internacionais (se for selecionado, obviamente), como o Caminhos, o FEST, o IndieLisboa, talvez o festival de curtas de Vila do Conde. Trabalhando numa produtora “Save The Cut” em Roma, Itália, conto também com alguns festivais italianos através da distribuidora “Son of a Pitch”. Contudo, assim que o filme estiver pronto, desejo organizar uma projeção em Monchique (não sei bem onde poderia ser, mas fico sempre aberto a sugestões) para todas as pessoas que fizeram parte do filme e todas as outras que queiram vir assistir. Pensei em tornar o evento mais abrangente e apresentar trabalhos de outros artistas de Monchique.

JM – Qual o orçamento? Conta com apoios locais?
GV –
O orçamento ronda os 6500€, que é um orçamento relativamente baixo para uma curta. Eu concorri ao concurso nacional do ICA (Instituto do Cinema e Audiovisual) para apoio a curtas-metragens em 2023, mas os resultados ainda não saíram e pelo que percebi, podem atrasar-se até ao verão deste ano. E como eu não quero esperar pelo final do ano, considerando que nem sei se o meu projeto seria escolhido, resolvi procurar apoios locais e fazer tudo com baixo orçamento e muita vontade de amigos. Ainda assim, consegui apoio financeiro da Câmara Municipal de Monchique, da Junta de Freguesia de
Monchique, da empresa Águas de Monchique, do produtor de enchidos e presuntos “Evangelista de Oliveira”, e estou ainda à espera da confirmação de
mais algum apoio privado, para além do contributo da produtora italiana Save The Cut.
Logisticamente, conto com o apoio do “Luar da Fóia” que me vão garantir os jantares da equipa, do alojamento local da Mara Reis, que deu uma ajuda super importante para meter esta gente toda a dormir. A produtora algarvia sediada em Faro “New Light Pictures” apoia-me com algum material técnico. O João Vairinhos vai-me deixar usar alguns dos seus carros antigos no set, enquanto que a Sílvia da Funerária Justino demonstrou-se bastante disponível para deixar-me filmar no seu espaço. Para além destes, tenho sido sempre recebido muito bem por todos os monchiquenses que conhecem o projeto e ficam muito contentes em ajudar: desde da Helena Martiniano (vereadora da cultura), José Gonçalo (presidente da Junta) Alice Duarte (artista monchiquense), a Rita Rodrigues (actriz), o Eduardo Pinto (Algarve Film Commission), a Madalena Victorino (Lavrar o Mar), Andreia Bartolomeu (grupo coral sénior), Bernardo Canelas (Luar da Fóia), Paula Pereira (Águas de Monchique), Nuno Murta (actor), Brian Peña (artista), Meire Gomes (artista), Susy Águas
(artista), entre outros. Para finalizar, criei uma campanha crowdfunding na qual peço 1500€ como apoio para alcançar o orçamento total do filme e pagar a todos os responsáveis pelo projeto: https://ppl.pt/Desgosto.

JM – O que espera alcançar com este filme? Prémios, notoriedade, reconhecimento, …?
GV –
Como primeira necessidade, tenho muita vontade de voltar a realizar (última vez foi em 2019) e contar esta história pessoal. Simultaneamente, quero envolver a vila de Monchique neste primeiro projeto de cinema de ficção. Por último, gostaria muito que esta história circulasse o máximo possível, que chegasse a tantas pessoas e que fosse reconhecido como um filme profundo e emocional. Claro que se uma dessas pessoas for um produtor com poder de investimento e que me convide a fazer um novo filme, seria o cenário ideal!

JM – Como e quando surgiu o seu gosto pelo cinema?
GV –
Eu passei parte da minha infância sozinho a brincar com bonecos (spider-man, power rangers, action man, esses todos). E acho que foi sempre um grande prazer criar e inventar histórias. Quando tinha 11 anos, o pai do meu vizinho Dylan, o George, mostrou-nos, aos dois, o grande clássico de Stanley Kubrick, 2001: Odisseia no espaço. Foi nesse momento que eu percebi que o cinema não era só os personagens a viver uma história, era muito mais complexo do que isso e, consequentemente, muito mais interessante. Então peguei numa velha máquina de filmar da minha mãe e comecei a filmar os meus bonecos.

JM – Que filmes mais o inspiraram? E, qual é o seu realizador de eleição? Porquê?
GV –
Como referi anteriormente, 2001 diria que foi o filme que mais alterou a minha perceção do cinema. Mas mais recentemente sigo o trabalho de Darren Aranofski, Denis Villeneuve, Lynne Ramsay, Gaspar Noé, Steve McQueen. Este último é talvez aquele que mais me motiva para continuar a fazer cinema. Dentro do panorama nacional, gosto muito do Miguel Gomes, Marco Martins, João Canijo, João Nicolau, João Salaviza, Catarina Vasconcelos, Leonor Teles.

JM – Como avalia a produção de filmes para os serviços de streaming, como a Netflix?
GV –
Penso que o cinema sempre foi simultaneamente uma arte e uma indústria. E as obras cinematográficas circulam um pouco entre estes dois polos. Normalmente aquelas mais próximas da arte têm orçamentos bem mais reduzidos, mas mais liberdade criativa. As grandes plataformas de streaming podem por vezes motivar e apoiar alguns artistas nas suas obras, mas na maioria das vezes preferem a quantidade à qualidade. Além disso, contribuem sempre mais para cadeiras vazias na sala de cinema. O qual eu considero também as pessoas responsáveis, porque, à parte daquelas que vivem em locais onde não existe cinema ou o que há não é bem escolhido, as pessoas podem optar por um bilhete de cinema em vez do comando de TV. Mas, no final das contas, estamos a fazer cinema (bom ou mau) e fico contente que as histórias no ecrã façam sempre parte das nossas vidas. Gostaria sim que houvesse uma tutela dos apoios para grandes produções, no sentido em que uma parte deveria ser sempre reservada a quem está a iniciar, são esses que precisam mais. Muitas vezes uma pequena parte de um orçamento de um blockbuster, dava para produzir 20 filmes, de 20 realizadores diferentes, com coisas diferentes para dizer e perspetivas diferentes sobre o mundo que te podem abrir os horizontes e quebrar barreiras mentais e sociais.

JM – Como caracteriza o cinema português? Falta alguma coisa?
GV
– Bem, o cinema português sempre foi considerado muito lento e aborrecido. Apesar de eu compreender essa crítica e não quero contrariar ninguém, a verdade é que Portugal sempre foi um grande importador de cultura, e ao nível de cinema e música, o que vem do outro lado do Atlântico obtém muito mais atenção. Talvez por isso é que os nossos bons cineastas apontam sempre para um cinema intelectual, um cinema virado para um circuito de festival e menos para vender efetivamente bilhetes no cinema. Em Itália, cada região tem a sua film comission e estas são sempre muito ativas e com um poder económico significativo para apoiar produções locais. Eu sinto que em Portugal é tudo muito centralizado no Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA). E, apesar desta ser a primeira vez que concorro ao concurso, ouvi sempre dizer que antes das candidaturas abrirem, já “se sabe” quem é que vai ganhar…

Gonçalo Viana
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