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Genesis (II)

O início deste segundo capítulo serve para referir que a música e outras artes desempenharam, desempenham para mim um papel de catalisadores da escrita, talvez por esse motivo a música dos Genesis me tivesse impelido a escrever, como se a música não se bastasse a si própria. O que quero com isto dizer é que as várias artes interagem entre si, e quanto maior a sua interacção, maior a ressonância da arte, da cultura, dos seus processos e mais longe chega a mensagem, a mais públicos.

Genesis – Período 1972-1974
Se Nursery Crime constituiu um marco decisivo no repertório da banda, os discos seguintes vão-se sucedendo num crescendo de qualidade musical e busca incessante, afirmando Rock sinfónico, que passava igualmente por significar Genesis.

Neste período editaram-se os seguintes discos (três de estúdio e um ao vivo):
Foxtrot
Genesis Live
Selling England by the Pound
The Lamb Lies Down on Broadway

Entre Foxtrot (Outubro de 1972) e Selling England by the Pound (Outubro de 1973) foi editado Genesis Live (Agosto de 1973), primeiro registo discográfico da banda ao vivo, testemunhando a intensa actividade de espectáculos ao vivo, confirmando a vocação universal do grupo, de um e do outro lado do Atlântico.

Os dois primeiros discos de estúdio remetem de imediato para o imaginário britânico e a sua cultura, bem patente nas suas capas:

Fig. 02 – Capa do disco Selling England by the Pound (1973)
Fig. 02 – Capa do disco Selling England by the Pound (1973)

Foxtrot, foi o primeiro grande disco dos Genesis. E foi tanto na consistência musical como nos destaques ou temas clássicos que impôs ao repertório da banda: Watcher of the skies e Supper’s ready. Uma das características dos temas do rock progressivo é a duração dos mesmos, sendo que nesta forma de rock a duração é bastante maior que no rock tradicional, sendo precisamente neste disco que se apresenta o super-tema Supper’s ready com cerca de 22 minutos e 54 segundos de duração.

Genesis Live
Com o propósito de promover o disco Foxtrot, a pedido da Charisma Records a banda realizou uma série de espectáculos ao vivo, que seriam gravados no disco Genesis Live, de agosto de 1973. A tournée realizou-se entre 9 de Setembro de 1972 e 26 de Agosto de 1973. Todos os temas do disco foram gravados no De Montfort Hall, em Leicester, em 25 de Fevereiro de 1973, excepto o tema Return of the Giant Hogweed, gravado em Manchester no dia anterior.

Selling England by the Pound
O disco seguinte e terceiro de originais neste período, embora numa sequência lógica pudesse representar a continuidade dos anteriores não pode sê-lo pela narrativa, estrutura e duração, é ao invés a obra que se individualiza, uma espécie de Ópera Rock em modo progressivo:

The Lamb Lies Down on Broadway
Para muitos, críticos musicais e não críticos, The Lamb Lies Down on Broadway, constitui um dos pináculos do Rock Progressivo e da música pop. Album conceptual ou programático, no seu centro está a história de Rael, um vagabundo (a punk) que percorre as ruas e subterrâneos de Nova Iorque em busca do seu irmão John. O Quarto com 32 portas é outro dos episódios, impregnado de um simbolismo ligado aos números e às leituras de Gabriel, dos textos essenciais, em especial da Bíblia. Esse compartimento ou quarto forneceria portas ou saídas suficientes para a interpretação dos sonhos. O programa ou guião da obra surge fundamentalmente da imaginação prodigiosa de Peter Gabriel mas deve-se igualmente à leitura e interpretação de obras fundamentais da Literatura Universal.

Fig. 03 – Capa do disco The Lamb Lies Down on Broadway (1974), onde os motivos oníricos resultam em grande medida da imaginação de Peter Gabriel
Fig. 03 – Capa do disco The Lamb Lies Down on Broadway (1974), onde os motivos oníricos resultam em grande medida da imaginação de Peter Gabriel

Existe desde logo a questão judaico-cristã do Cordeiro neste disco, no título e título-tema The Lamb lies down on Broadway, ou O Cordeiro jaz na Broadway, um simbolismo bíblico evidente. Não um Cordeiro redentor, que nos é enviado para a salvação ou emenda dos nossos erros, mas um Cordeiro em plena encenação teatral, um Cordeiro que jaz no centro da cosmopolita Nova Iorque, no centro da sociedade do espectáculo, um Cordeiro lúdico e pantomimeiro à procura de um palco ou sucumbindo nesse altar mundano. E aí lies down, de jazer, é considerado na acepção de corpo inanimado ou sacrificado a essa sociedade frívola da grande urbe. Atente-se no texto:
(…)
The lamb seems right out of place
Yet the Broadway street scene finds a focus in its face
Somehow it’s lying there
Brings a stillness to the air
Though man-made light, at night is very bright
There’s no whitewash victim
As the neons dim, to the coat of white
Rael Imperial Aerosol Kid
Wipes his gun-he’s forgotten what he did
And the lamb lies down on Broadway

Este é o testemunho de João, no quarto Evangelho do Novo Testamento da Bíblia: «Eis o Cordeiro de Deus, que tira o erro do mundo».

Na leitura de Gabriel, o Cordeiro que tira o erro falece, votado ao abandono, como corpo lívido sobre o chão da Broadway, Ele que ilumina e contudo fenece em pleno espectáculo.

Fig. 04 – Capa interior do disco The Lamb Lies Down on Broadway (1974)
Fig. 04 – Capa interior do disco The Lamb Lies Down on Broadway (1974)

Existe igualmente a evocação de Lamia, que na mitologia Greco-romana foi a rainha da Líbia e devoradora de crianças (também é associada a Lilith da mitologia hebraica). Para além das referências à cultura da Antiguidade Clássica, à tradição judaico-cristã, tal como em “It is real/ It is Rael” (“is real” = Israel?) na 23.ª e última faixa do disco, intitulada It, em tom de derradeira revelação no epílogo:
(…)
It is here
It is now
(…)
It is inside the spirit
(…)
It is real
It is Rael
(…)

O disco representa igualmente um dos picos da banda, em termos criativos e de reconhecimento público, mas marca de igual forma o seu declínio, motivado pela excessiva concentração de atenções na figura de Gabriel e das tensões que tal atenção motivaram no seio do grupo, levando à saída de PG, e à dissolução da formação clássica da banda.

O rock sinfónico ou rock progressivo tal como o conhecemos desde o fim da década de 60 e início da década de 70 advém duma reacção ao rock das décadas anteriores, influenciado pelo psicadelismo da flower power generation e pela evolução tecnológica, sobretudo às formas da música erudita, ampliando a extensão dos temas como se tratassem andamentos, introduzindo características atmosféricas aos ambientes musicais.

Os Genesis estiveram em Portugal em 1975, em dois concertos memoráveis em Cascais, a 6 e 7 de Março, tocando para mais de 10 000 pessoas, onde se cruzaram a paixão pela música e o movimento da revolução em curso, num ambiente efusivo, quase caótico, com militares entre o público, que esgotou o espaço do Dramático de Cascais.

E assim concluo a história de uma banda, iniciada na escola Charterhouse até à edição de The Lamb Lies Down on Broadway, em menos de 10 anos, elevaram o nome GENESIS a algo mítico, só equiparável ao relato Bíblico.

 

Foto de destaque: Fig. 01 – Capas do disco Foxtrot (1972)

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