Galeria de St. António expõe desenhos bordados e “pintados com lãs”
Reportagem publicada na edição 476, de 28 de julho de 2023
Maria Laura Martiniano foi professora de escola primária em Monchique durante quase 30 anos e, desde que entrou na reforma, começou a dedicar-se mais aos bordados e outros trabalhos manuais. Agora, aos 93 anos, tem em exposição, até 18 de setembro, as suas obras na Galeria de St. António, juntamente com desenhos da sua filha Zé Ventura e de outros autores.
Volvidos quase 90 anos desde que agarrou nas primeiras linhas e agulhas, D. Laura viu agora os seus trabalhos a saírem de dentro das gavetas e das paredes onde têm estado pregados para serem expostos na Galeria de St. António. Devia ter entre os quatro e os oito anos, conta Maria Laura Martiniano, quando começou a pedir à sua mãe para lhe fazer um “desenho num paninho” durante as quintas-feiras em que, não havendo aulas, a sua mãe ensinava as meninas e mulheres da Aldeia da Figueira a fazerem bordados, rendinhas e tricôs. Hoje, com 93 anos e sentada na poltrona da sua sala de estar, em Portimão, D. Laura vai introduzindo e puxando as linhas coloridas para “ocupar o tempo”, já que o que não suporta é “estar sem fazer nada”.
Ao longo da vida nunca deixou de ter contacto com os bordados, até porque foi professora de escola primária em Monchique durante cerca de 30 anos e, na altura, os bordados eram muito presentes na área da educação. Todavia, nunca fez “assim bordados muito especiais, para além do ponto cruz”, recorda a artesã. Só mesmo desde que entrou na reforma é que passou a aventurar-se mais no chamado ponto pé de flor – que, comparativamente ao ponto cruz, refere, tem a mais-valia de não exigir um esforço de visão tão grande.
“Ela passa os desenhos para o pano” e depois vai bordando pontinhos atrás de pontinhos, geralmente começando no contorno, sendo que “tem de ser um desenho em que consiga saber o caminho que tem de seguir”, descreve a filha, a artista Zé Ventura, enquanto mostra os trabalhos que tem estado a juntar para a exposição na Galeria St. António, que inaugurará no sábado, dia 19 de agosto, às 18h, e ficará patente até 18 de setembro.
Muitos deles são bordados de obras da própria Zé, outros são imagens que esta arranja de livros e do Facebook, ou então de grandes pintores como Picasso e Matisse. Além destes, D. Laura também recebe vários desenhos para bordar de artistas mais pequenos, como do neto ou da filha da sua fisioterapeuta. Foi desta forma, aliás, que a sua arte veio ao de cima, quando num certo Natal ofereceu a cada um dos filhos um bordado de um desenho que fizeram em criança.
Um dos seus primeiros bordados data de 1993 e é um quadro grande, cheio de cores e detalhes, tudo feito com lãs. Ou melhor, “pintado com lãs”, como diz o seu sobrinho, brinca Zé.
Disposto no chão, ao lado do bordado da capa do livro “Gralhas”, do escritor monchiquense Eduardo Duarte – que ficou encarregue de escrever o texto de apresentação da exposição -, vê-se uma imagem publicitária da cidade do Porto da autoria de Eduardo Aires, à qual D. Laura diz ter achado “muita piada” quando a descobriu num jornal. Zé Ventura procurou depois o autor e enviou-lhe o bordado, tanto que o facto de ter sido “uma algarvia a bordar uma coisa do Porto” gerou um tal fascínio que até o presidente da Câmara do Porto reagiu. “Ficaram todos muito encantados”, recorda D. Laura.
Olhando para os trabalhos da mãe, Zé Ventura destaca a sua “capacidade de interpretação” das imagens originais que é como se trouxesse uma nova vida à criatividade de outros. Para D. Laura, no entanto, os bordados não passam de uma atividade de entretenimento que vai “fazendo conforme” o dia e a disposição. Tanto que a ideia desta exposição individual foi tudo obra dos filhos: “Nunca tive essas ambições, nunca fui pessoa exibicionista, vaidosa”.
Mãos de artista, alma de criança
Das mãos de D. Laura não saem apenas bordados, mas também uns recortes em papel, segundo a técnica japonesa Kirigami, que vai oferecendo a várias pessoas com o nome próprio delas inscrito. Considerando o número de ofertas que já tem feito – desde às pessoas que trabalham nas suas redondezas, como no Continente, na farmácia ou no sapateiro, aos muitos vizinhos e amigos -, certamente que já corre uma vasta coleção de recortes por Portimão e não só.
“É muito fácil de fazer”, começa D. Laura por dizer, pedindo à filha uma folha para demonstrar como se cria. Depois de a dobrar ao meio, desenha-se “as letras de modo que fiquem aqui ligadas”, explica, apontando para a margem onde dobrou o papel. “E agora vou com a tesoura”. Houve uma altura em que pensava ter aprendido esta técnica num jornal que o seu genro tinha trazido para casa e onde aparecia um “John” em Kirigami. Mas, entretanto, descobriu-se uma capa de desenho de Zé do primeiro ano de liceu com um desses recortes.
Enquanto dá vida ao papel, D. Laura vai recordando diversas histórias da sua vida, como quando ouviu um senhor a chamar “Vitória, Vitória” a uma criança, certamente a sua neta, e, por ter gostado tanto do nome, resolveu fazer um recorte e oferecer-lhes no dia seguinte. “Olharam para aquilo e não chegaram lá”, pelo que teve de revelar o que a forma das letras realmente representava, conta, divertida.
Apesar de ter lamentado no início da conversa que é “muito esquecida”, mais no que diz respeito às coisas do “antigamente” do que às “do momento”, D. Laura vai partilhando os momentos do passado com uma voz calma e um sentido de humor muito presente – que pouco depois se viria a tornar mais evidente na forma como gosta de contar adivinhas e anedotas. “Sabe onde acaba o arco-íris? Não sabe? No ‘s’.”, atira. “O que é que, sem sair do seu cantinho, viaja por todo o mundo? O selo.”, continua. Ou “o que é que aberto guarda tudo e fechado não guarda nada? O chapéu de chuva.”
Não obstante a sua idade avançada, a lucidez que D. Laura apresenta talvez se deva aos trabalhos manuais e às palavras cruzadas que tanto gosta de fazer, ou às aulas de “Ciências da Vida” que ainda frequenta na Universidade Sénior. Outra hipótese é por ter conservado a alma da pequena Maria Laura que “fazia umas grandes partidas na escola”: “Gostava de brincar e ainda hoje gosto”, refere. É como se tivesse dado ouvidos a um dos seus próprios poemas, em que deseja ao leitor que, “ao longo deste caminho que te falta percorrer, nunca te falte o carinho e a alegria de viver”.
Errata: Na edição impressa, escrevemos, por engano, que a exposição era individual, mas é uma parceria entre mãe e filha, isto é, entre Maria Laura Martiniano e Zé Ventura.