CulturaDar o nome ao português

Fúria

“De todas as doenças do espírito humano, a fúria de dominar é a mais terrível”. (Voltaire)

furiaAs mitologias, repletas de lendas e de jornadas fantásticas passadas nos três mundos, o celeste, o marinho e o subterrâneo, revelam-nos mitos, velhos de muitos milénios, que nos ajudam a entender as relações humanas e as respectivas interacções. Encerrando em si a chave para o conhecimento das coisas do mundo e da nossa mente analítica, atemporais e eternos, os mitos, de que as Fúrias1 são um paradigma, estão presentes na vida de cada ser humano, pouco importando em que tempo ou local ele viva ou tenha vivido. Espíritos femininos de justiça e vingança, tão antigas como os crimes que elas perseguiam e a inocência ultrajada que se esforçavam por vingar, as Fúrias, originalmente em número indeterminado mas, na mitologia tardia, representadas como três implacáveis irmãs de nomes Tisífone, Megera e Alecto, eram divindades infernais encarregadas da execução das sentenças a que os humanos culpados de assassínio, principalmente de membros da sua própria família, eram condenados pelos deuses. Tisífone, de pele negra como o carvão, vestida com roupas ensanguentadas, a cabeleira enredada em serpentes, vigiava dia e noite à porta do Tártaro2, pronta para exercer o seu terrível ofício: assim que uma sentença era pronunciada, avançava armada de tochas ardentes e de chicotes ao encontro do criminoso, atormentando-o durante o sono até o levar à loucura. Tão pavorosas e cruéis quanto ela eram as suas irmãs. Personificação do rancor, da inveja, do ciúme e da traição, Megera movia a sua sanha contra os culpados de crimes de ofensa ao matrimónio, tendo a infidelidade como principal alvo e perseguia os infractores por toda a eternidade, gritando-lhes aos ouvidos as suas faltas. Alecto, dita “a implacável”, semeava pestes, maldições e pragas como castigo contra os coléricos, os soberbos, os aleivosos e os infames, ameaçando-os com fachos acesos e víboras venenosas, impedindo-os de dormir em paz. Deusas justas, porém inclementes, era seu dever manter a ordem e a harmonia no seio das famílias, da sociedade e do mundo moral. Chamadas Eríneas3 ou Euménides pelos gregos, elas inspiravam a angústia dos remorsos, dos castigos inevitáveis e, por isso mesmo, faziam compreender aos humanos a importância de uma consciência honesta e as vantagens da virtude, recomendando a discrição, a prudência e a moderação na conduta.

Transtorno psiquiátrico caracterizado por ataques inesperados de raiva e de agressividade não premeditados, a fúria, e, por analogia com as perturbações psíquicas causadas pelas tempestuosas intervenções das três deusas, os efeitos que ela pode produzir, é talvez a mais deplorável de todas as misérias relacionadas com a condição humana. As crises de fúria acontecem por impulso e são geralmente desproporcionais às situações que as motivaram: um desentendimento, mesmo que ligeiro, com um familiar ou um amigo; uma desconfiança, ainda que infundada; uma palavra mal interpretada; uma contrariedade (p. e. um aumento de preços na mercearia); um transporte público atrasado ou até uma peça de roupa que deixa de servir, tudo e qualquer coisa pode despoletar uma reacção arrebatada num sujeito enfurecido4. Característica da personalidade ou problema adquirido ao longo da vida, o indivíduo5 que sofre desta doença grita, insulta, agride e lança objectos descontroladamente, atingido por uma exaltação violenta e causando sérios problemas de relacionamento na família, no trabalho e até com desconhecidos na rua, principalmente no trânsito. Em finais do século XIV, apareceram na língua portuguesa os substantivos fúria e furor e o adjectivo furioso6, procedentes do latim. Os adjectivos furibundo7 (1572) – aquele que se assanha por “dá cá aquela palha”, um fanfarrão da breca que, por motivos frívolos e inconsistentes, simula ataques de furor ao ponto de se tornar tão ridículo quão cómico- e furial8 (1817) são termos mais tardios, mas que, tal como os precedentes, mergulham na mesma raiz latina, o elemento complementar antepositivo fur-9, o qual, por sua vez, remonta etimologicamente ao grego πυρ10 (leia-se pyr), que significa o fogo. E é, na realidade, como que um fogo devorando as entranhas, que acende o furor nas paixões violentas, tais a cólera, a vingança, o amor, a inveja, a raiva, a cobiça, o ódio, vide até os fanatismos, do religioso ao patriótico ou ao militar, levados ao extremo. Para além destas causas morais, o furor pode também ser causado ou determinado por meios físicos: uma fome prolongada, um apetite sexual reprimido ou insatisfeito, um estado de ebriedade acentuada, uma febre elevada, o desespero de uma amante abandonada ou ultrajada11, constituem razões para o surgimento de um frenesim que, fazendo o sangue subir ao cérebro, provoca violentos acessos de delírio e de raiva, os quais, não raras vezes, conduzem ao homicídio. Fúria e furor têm, no entanto, outros sentidos, como por exemplo: “fazer furor” falando de uma pessoa ou de uma coisa que está muito em voga e que excita no público uma viva curiosidade; a “fúria poética”, ou inspiração, como a que Camões invoca no canto I, 5 d’Os Lusíadas12; a “fúria dos elementos”, referindo vendavais, tempestades e outras procelas particularmente violentas; a “fúria do jogo”, que empolga homens e mulheres de todos os extractos sociais, quantas vezes com as mais funestas consequências; o “furor epiléptico”, comportamento agressivo que o paciente não recorda passada a crise; a “fúria consumista”, que é uma necessidade compulsiva, irracional e desenfreada, quase fisiológica, de tudo querer comprar; o “furor uterino” ou ninfomania, distúrbio sexual que afecta um mais vasto universo feminino do que se pensa; ou a temível “fúria de dominar”, de que padeceram o macedónio Alexandre Magno, o chinês Qin Shi Wang, os romanos Calígula e Nero, o huno Átila, o curdo Saladino, o mongol Gengis Cão, o turcomano Tamerlão, o espanhol Hernan Cortez, o corso Napoleão Bonaparte, o soviético José Estaline ou o austríaco Adolfo Hitler, para não nomear senão os mais famosos de uma plêiade de alucinados, cujas manias de grandeza, psicopatias e vontade de domínio conduziram à eliminação física ou à estropiação de um número incontável de vítimas humanas. Já os furores, que são exaltações frenéticas ou intensos arrebatamentos de alma que excitam e tiranizam os espíritos mais sensíveis (santos, poetas e outros iluminados) serão inócuos se temporários, mas quando os sintomas são persistentes cuidem-se os simples mortais, pois podem degenerar em tremendos acessos de raiva com desenvolvimentos imprevisíveis.r

Citações:
“…é esta fealdade de fúrias em tropel no encalço do apavorado coelho pidesco que volve a minha repulsa contra os possessos da justiça popular.”; Natália Correia in “Não Percas a Rosa”, pág. 39; Publicações D. Quixote.

“…Custódio sentiu-se cegar de fúria, um daqueles raros acessos em que só a violência o fazia regressar à calma.”; Mário Ventura in “ Vida e Morte dos Santiagos”, pág. 196; Editorial Caminho – O Campo da Palavra/4ª edição.

“A fúria da repressão não os atemorizava, antes punha ímpetos onde muitas vezes houvera receios.”; Alves Redol in “Os Reinegros”, XX, pág. 256, 1ª edição, 1972; Publicações Europa – América.

“ «Afinal, a vida está toda ela falsificada», pensava ela na medida em que a fúria lhe prendia a memória e lhe dava nova força para continuar a viver.”; Orlando Muhlanga in “As Mãos dos Pretos (A Fúria da Camponesa) ”; Antologia do Conto Moçambicano; Publicações D. Quixote.

Notas:
1 Tal como a maioria das divindades gregas, as Fúrias são de origem egípcia. Os povos de Mênfis, antiga cidade do baixo Egípto, adoravam uma Ísis irritada com um alqueire à cabeça e um chicote na mão. Medalhas encontradas em Cirene, cidade grega na actual Líbia, representam as Fúrias coroadas de lótus, planta comum nas margens do Nilo.
2 Lugar, abaixo do Hades (Inferno), para onde eram expedidos os mais infames criminosos, para aí expiarem os seus castigos. Sísifo (ladrão e assassino), Íxion (parricida) e Tântalo (que ousou revelar os segredos dos deuses aos homens), padeciam os seus tormentos naquele lugar tenebroso.
3 Do grego ερισ = Éris (discórdia). O poeta Hesíodo dava-lhes como origem as gotas de sangue da castração de Urano, o deus primordial dos céus, fecundadas por Gaia (a Terra); mas Ésquilo, Eurípides e Sófocles dão-nas como filhas de Aqueronte (o primeiro rio do inferno) e de Nyx (a Noite).
4 D. Francisco Manuel de Melo in “Epanaphoras de varia historia portugueza”, pg. 247, ano de 1660.
5 Popularmente descrito, no Brasil, como “pavio-curto”, conforme o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa.
6 Adjectivo : impetuoso, violento, arrebatado, irritado, raivoso, enraivecido; substantivo: louco, insano, frenético, alucinado.
7 Luís Vaz de Camões in “Os Lusíadas”, Canto VI, 76.

8 O mesmo que furioso; Filinto Elíseo in “Obras Completas”.
9 Não confundir com a palavra latina fur, que significa “o ladrão”.
10 Raiz que se encontra no termo pirómano (que ou aquele que padece de piromania, que tem a mania de incendiar).
11 Já dizia Virgílio – “Notum que furens quid femina poesit” (É sabido quanto pode uma mulher furiosa).
12 “Dai-me hua fúria grande e sonorosa, e não de agreste avena, ou frauta ruda, mas de tuba canora e belicosa…”.

(Texto escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico)

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