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Festa-Feira-Festa

‘’Durante mais de um ano criei um falcão.
Depois, vi o falcão voar. Que maravilha.
– Que Deus junte aqueles que gostam de se amar.’’

in “Rosa do Mundo” –
Poema austríaco da 2ª metade do Séc. XII

 

Há muitos anos, e durante muitos anos, a Festa era o Natal. A Festa do abraço dos amigos e irmãos, dos beijos entre pais, filhos e avós, do matar saudades e do correr de uma lágrima. Também do calor e do fumo da lareira debaixo da telha-vã.

Mas até esta festa era ao desbarato – não se vendia nada, nem “ao preço da uva mijona” – dava-se tudo. Com a abundância do brilho dos olhos, com a fartura das filhós e das fatias douradas, com o café quente e perfumoso, assente com uma brasa tirada do fogo com uma tenaz e deitada para dentro da cafeteira. Mas sobretudo, com abastança de ternura e de carinho. Que grande Festa era!
No entanto, as outras festas também eram os bailaricos no campo ou a matança do porco, o casamento, o entrudo e, muito especialmente, as procissões e as festas litúrgicas. Tudo se vivia intensamente.

Depois apareceu a Festa-Feira, que não era apenas “feira de vaidades”, mas também. Aqui entra a despesa, o custo, o gasto, o consumismo, de mãos dadas com a realidade dos sonhos das crianças com os brinquedos (que só uma vez por ano apareciam à venda), a tontura do carrocel, dos carrinhos de choque, das voltas dos aviões lá nos ares. (…Uma vez, duas senhoras mães de oito filhos [das duas…] com as crianças no chão a assistir ao voo, ficaram lá em cima; e o homem da máquina voadora, cá de baixo, gritava sem parar: carregue na alavanca, menina…e elas não conseguiam aterrar).
Havia toda esta Feira-Festa em que se vendia a alegria rebolando em gargalhadas. Mas também a rua dos ourives e até a tenda da “vida de Cristo” desfilando perante o respeito e comoção dos espetadores.
Hoje tudo é diferente. É claro que não podia deixar de o ser. Porque “todo o mundo é sujeito a mudança”. E a Festa-Feira passou a ser a Feira-Festa. E há muitas. Feiras mensais e semanais de frutas e hortaliças, ou de velharias e antiguidades. Feiras temáticas desde as gastronómicas às de artesanato. Passando pelas das ideias, do ambiente ou da ciência e tecnologia. Mas deixemos esta avalanche e permitam-me dizer que este ano fiquei bêbado com a Feira do Livro de Lisboa.

Desde muito novo, criança ainda, no dia em que descobri a luz, o colorido e o perfume das palavras, poisou na gaiola do meu peito um jovem e belíssimo falcão. Criei-o assim durante anos.

Deixando-o de vez em quando vaguear pelos cantos da casa, nos peitoris das janelas. Um dia, enfeitei-o com tudo o que tinha de valor, pousei-o no indicador da mão direita, e o falcão levantou voo. Resplandecendo e com uma auréola. “E que maravilha”! Longos tempos depois, voltou. E trazia, preso à anilha de fios de seda (ainda a mesma com que eu o enfeitara), uma mensagem, escrita numa língua universal, dizendo: “Que Deus junte aqueles que gostam de se amar”. E há mais de mil anos que, em vez do falcão, criado por mim, guardo no coração esta mensagem.

Mas este ano, foi o pássaro dourado, a ave de rapina que eu soltara, que andou e esvoaçou pelo Parque, desfolhando as flores dos Nobel e das grandes e pequenas vozes, pelos milhares de pessoas que por ali andavam, por todos os que “gostam de se amar”: os homens e os livros, os olhos e as palavras, a poesia e a emoção. Também o casamento da alegria com a música, do sol com os autógrafos e os minutos de conversa com os autores que as editoras traziam às suas bancas, do chilrear dos pássaros e das crianças com as histórias ilustradas e com os balões de todas as cores do arco-íris. Ainda dos pares de namoradinhos, dos casais com bebés pendurados ao peito, ou de um casal que lá encontrámos, com um rancho de sete filhos, ou dos idosos (muitos) equilibrando-se no arrimo das bengalas.

Que grande Festa! Que grande Feira! Que grande Feira-Festa!

No meio de todo este bulício, somos apanhados pela Festa-Festa. Em junho, Lisboa está sempre em festa. Hoje, Lisboa é azul, vestida de azul, com uma saia de Tejo azul prateado. Com um corpete de céu azul celeste com jacarandás estampados. Está linda. Garota, gaiata e “mais cheia de graça”. De calções curtos e pernas bem torneadas. Toda ela um alvoroço, uma tentação. Santo António, para vê-la de perto, parte a bilha a todas as moças dos bairros populares e põe os alfacinhas em transe. Há arraiais e tronos e balões e bandeirinhas e flores de papel e cheiro a sardinha assada e a manjerico quase rua-sim, rua-sim. Há coretos e palcos com bandas populares ou de nomeada. Esplanadas e cerveja por todo o lado, caracóis e sardinhas no pão ou em cima da mão. Aos fins de semana as marchas infantis ou meio graúdas, desfilam de mãos na cintura, virando-se de um lado para o outro, num balançar e abanar-se constante, por sobre uma passadeira azul de jacarandás, por baixo de um arco triunfal azul de jacarandás. Toda a gente vem para a rua e os grupos de amigos avançam ondulando e bandeando-se ao som da música, com um balão (de borracha) na ponta de um pauzinho para se identificarem quando se “partem” ou se perdem. É um mar compacto, de sal grosso e pesado que alastra por toda a parte. E a cidade torna-se aldeia. De montes de gente que se visita e se troca de “monte em monte”, e todos são castiços, marchantes e fadistas.

No perímetro dos largos, ou em parte dessa linha, erguem-se as tendas árabes, brancas, de cúpulas altas e agudas viradas para o céu. Aí se aviam as imperiais, as sardinhas, os caracóis, o churrasco ou até as alheiras grelhadas. E a marcha continua para os que já não conseguem um lugarzinho a uma mesa. Como novidade (para mim), em pleno largo da Graça, junto às grades do quartel onde fiz a recruta no meu tempo de militar, estava uma “novidade” que, embora útil, não deixava de ser curiosa e surpreendente. Imaginem um volume (também ele azul…) com a forma parecida a uma pinha gigante, aí com a altura de um homem, e que se abriu em talhada sim talhada não, como se faz com um melão. As talhadas que foram tiradas à peça faziam um ângulo que tinha, a menos de meia altura, um fundo género concha de chafariz, com um buraco no fundo. Tudo azul, tudo sem costuras e num material que parecia ser esferovite. Não sei. Em fila, para cá do passeio, e já na rua. E aquela coisa estranha, assim pública e convivendo com o arraial, era, nem mais nem menos que …um urinol. Enfim: inovações, modas.

O clímax da noite de Santo António foi o concurso das Marchas dos bairros a desfilarem na Avenida. Num mar de gente, de luzes e de cores, de música e de fantasias, de criatividade e beleza. Tudo isto numa mão cheia. Este ano primou o “pé descalço”, mas lá que foi bonito, foi. Para inglês ver mas para português sentir. Muita movimentação, muitos temas alegóricos, uma bela marcação coreográfica unida a muita vibração, alegria e bairrismo.

Ali estava o povo que sofre e trabalha, que muitas vezes soluça por dentro mas sabe rir por fora. E que é senhor de uma nobreza de sentimentos e é capaz de fazer estoirar o coração numa lição de vida. Na ilustração de uma Festa.

 

Ilustração: Amadeo de Souza Cardoso. 1913

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