Opinião

Dantesco

Existem algumas palavras que, procedentes da história literária1, atravessaram os séculos e transpuseram as fronteiras geoculturais, para se imporem ao nosso quotidiano, encontrando um lugar indiscutível nas instituições da linguagem. Dantesco faz seguramente parte delas. Para designar não apenas o que diz respeito ou pertence ao poeta italiano Dante Alighieri (1265 – 1321) e o que evoca o seu mundo e o seu estilo, mas também o horror causado pelos versos que as visões do Inferno lhe inspiraram, os dicionários italianos atestam a existência da palavra dantesco a partir da segunda metade do século XVI2. Para os demais idiomas europeus, necessário foi aguardar pelo período romântico, que consagrou Dante como património da humanidade e figura universal de poeta, a par de Homero, Shakespeare e Camões: em 1785, surgiu no inglês dantean, assim como as suas variantes dantescan e danteish3; em 1799, foi a vez da língua alemã grafar o termo dantesk4; e, em 1818, o filólogo e dramaturgo parisiense François Raynouard enriqueceu o léxico francês com dantesque5. Este adjectivo, sinónimo de qualificativos do género “apocalíptico, colossal, diabólico, medonho, pavoroso, sublime”, aparece na língua portuguesa em 1884, quando Camilo Castelo Branco fala de “cobiças dantescas” para descrever os seus apetites de convalescente de uma anemia6, comparando-os aos de Ugolino della Gherardesca, o traidor magistrado de Pisa, condenado no nono círculo do inferno da Divina Comédia a roer por toda a eternidade o cachaço do arcebispo Ubaldini7. A história da língua não quis, portanto, reter da obra do magnífico poeta florentino, a título de homenagem ao homem e de contributo mais flagrante para o imaginário universal, senão o seu epónimo, como forma de classificar acontecimentos e cenas característicos dos angustiantes e terríveis suplícios infernais. Baptizado Durante8, Dante não foi apenas “il sommo poeta”9 (e isso teria sido quanto bastava para lhe conferir o estatuto de imortal), dos maiores de todos os tempos e, incomparavelmente o maior entre os italianos. Médico, filósofo moralista, diplomata, teórico literário e pensador político, ele foi o criador da língua italiana, tal como é hoje falada, e uma das figuras mais gradas da vida literária e política da Itália do início do século XIV. As circunstâncias exteriores da sua vida apresentam-se envoltas em incerteza: da mãe, apenas se sabe que lhe chamavam Bella (Gabriella degli Abati)10 e morreu cerca de cinco anos depois de o dar à luz; e do pai, Alighiero di Bellincione, que pertencia à facção dos guelfos anti-papistas11, que se tornou a casar e que, ao morrer, em 1275, o deixou aos cuidados da madrasta12. A sua infância, adolescência e educação tão pouco são conhecidas. O acontecimento mais importante da primeira juventude de Dante foi o seu encontro com Beatriz de Folco Portinari, depois celebrada na sua obra poética. Conforme se acha narrado no primeiro poema de Dante, a Vita Nuova, encontrou-a pela primeira vez numa festa familiar quando ele contava nove anos de idade e ela alguns meses menos. A partir desse momento, o amor por Beatriz parece ter sido a influência dominante da sua vida, amor espiritual e platónico que perdurou para lá do falecimento da jovem, ocorrido em 9 de Junho de 1290, e que o casamento com Gemma Donatti, quando o poeta era ainda um garoto de apenas 12 anos, não conseguiu suplantar, mantendo Beatriz como musa inspiradora ao longo da sua carreira. Aos 18 anos, Dante era já admirado e considerado, no meio cultural e político florentino, tanto pelos seus poemas como pela sua intervenção nos negócios municipais. Em 1289, tomou parte numa invasão do território de Arezzo e participou na tomada da fortaleza de Caprona. No Verão de 1300, foi escolhido para ser um dos seis Principais da cidade, e data daí, como ele próprio o disse, o início da sua derrocada: em 1302, é acusado pelo partido da oposição, os guelfos negros, de corrupção e de conspiração contra o Papa Bonifácio VIII (que ele um dia atirará para o Inferno) e obrigado ao exílio. Dante nunca mais regressaria à sua amada Florença. Sucessivamente acolhido ou refugiado em Verona, em Pádua e em Pisa, em 1317 instalou-se em Ravena, onde passou os últimos anos completando a sua obra maior, a Divina Comédia, o sublime poema que, no seu género, talvez a humanidade nunca verá superado. Autor de numerosos escritos, a posteridade destacou, pelo seu elevado sentimento e encanto poético, a já mencionada Vita Nuova (Vida Nova) onde narra a história do seu amor por Beatriz, a “angiola gentilíssima”; De Vulgaris Eloquentia (Sobre a Língua Vulgar),tratado filológico, um dos mais interessantes escritos de Dante, curiosamente redigido em latim, definido como a primeira tentativa de um tratado científico da língua italiana; Il Convívio (o Convívio ou Banquete), compêndio da filosofia do seu tempo, uma combinação de prosa e poesia na qual os 14 poemas são servidos como iguarias e o comentário que os acompanha, como o pão; Le Rime (As Rimas), colecção de poemas sobre diversos temas e assuntos, do Amor à Ciência, da Física à Moral; De Monarchia (A Monarquia), tratado político em que defende a tese da separação entre os poderes temporal e espiritual, ou seja entre o Estado e a Igreja, e que serviu de base para a construção teórica dos Estados modernos; e, finalmente, a Divina Comédia, que descreve a viagem do próprio Dante através do Inferno (guiado pelo poeta latino Virgílio, símbolo da razão humana), Purgatório (pela mão da sua amada Beatriz, símbolo da Graça divina) e Paraíso (onde é sucessivamente atendido por S. Tomás de Aquino, São Boaventura e São Bernardo). Vivesse Dante no Portugal do nosso tempo, iria constatar que a maioria dos indivíduos que constituem a sua classe dirigente apenas observa onde se encontram os recursos públicos, com os pés fincados no lodo da corrupção. Vivesse Dante em Portugal e soubesse o que nós sabemos hoje, teria certamente destinado um penoso lugar no último círculo do Inferno a essa cambada de sem-vergonha que infesta o país e infecta o seu povo.r
Notas
1 A noção de “história literária” pode ser concebida, segundo as teorias da Escola de Constância, como a História da recepção dos textos literários. A Escola de Constância foi a primeira grande tentativa de renovar o estudo da literatura a partir da leitura, numa relação texto/leitor, dando origem à Estética da Recepção.
2 “ Dantesca gravità” é a qualidade que Benedetto Varchi atribui, em 1565, a um soneto de Miguel Ângelo.
3 Cf. The Oxford English Dictionary. Todavia, o verbo to dantize aparece relatado (ainda por referência a Miguel Ângelo), em 1764.
4 Cf. um artigo da autoria de W.A. von Schlegel sobre o pintor John Flarman, publicado na revista Athenaum.
5 In “Journal des Savants”, novembro de 1818, página 683. Porém, o “Le Trésor de la Langue Française” anota-lhe a origem em 1830, na Correspondance de Lamartine, e o “Grand Robert” num texto de Nerval, de 1832.
6 In “ Vinho do Porto/Processo de uma Bestialidade Inglesa”.
7 In “Divina Comédia”, Inferno – Canto XXXIII.
8 Dante é um hipocorístico de Durante, tal como Zeca o é de José ou Belinha de Isabel.
9 O maior poeta, em italiano.
10 Nome que originou gastos equívocos, por significar “ Gabriela dos Abades”.
11 Aliança política envolvida em lutas contra outra facção de florentinos, os Gibelinos.
12 Signora Lapa di Chiarissimo Cialuffi, com quem o pai de Dante teve duas outras crianças, Francesco e Gaetanna.

Citações:
“Eram duas mãos de boi guisadas, loiras, de uma untuosidade oleosa que punha carícias ferozes nos dentes, e aguçava na abóboda palatina as cobiças dantescas do faminto Ugolino e de um professor português de instrução primária.” Camilo Castelo Branco in “O Vinho do Porto/Processo de uma Bestialidade Inglesa”, pág. 45; Colares Editora.
A Rita pegava num gasómetro e os dois pequenos, filhos de Ezequiel, iluminavam esta cena infernal com dois archotes de palha que emprestavam um sinistro clarão a todo aquele ambiente dantesco.” Luís Coelho Albernaz in “Os Ratinhos”, pág. 88; Edição Minerva.
“… o grupo me sufocou com avassaladoras estatísticas de câncer, enfisemas, tromboses, acidentes cardiovasculares, cavernas pulmonares, numa paisagem dantesca forjada pela nicotina. “ Ruy Guerra in “20 Navios/Nós, os Monstros”, pág. 174, 2ª edição, 1999; Editorial Caminho/Uma Terra Sem Amos.
“Era um sonho dantesco… o tombadilho que das luzernas avermelha o brilho, em sangue a se banhar. Tinir de ferros… estalar de açoite… Legiões de homens negros como a noite, horrendos a dançar…”. Castro Alves in poema “O Navio Negreiro, IV”.

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